Letra Nova

O Ateneu, o romance da destruição

O livro de Raul Pompeia ganha em nova edição comentada, com ilustrações do autor e uma nova abordagem


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

06/03/15 11:39 - Atualizado em 06/03/15 12:33

Raul Pompeia e O Ateneu (Foto: Reprodução)
Raul Pompeia e o romance O Ateneu (Foto: Reprodução)

Quando o romance O Ateneu - Crônica de sudade, de Raul Pompeia, saiu em folhetins em colunas verticais na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, entre 8 de abril e 18 de maio de 1888, alcançou um sucesso imediato. Tanto que as duas edições em volume, a primeira lançada logo depois dos folhetins, pela Tipografia da Gazeta de Notícias, esgotaram-se em pouco tempo. O êxito se deveu ao estranhamento de uma prosa poética e a um enredo invulgar naquela época, pois contava, em primeira pessoa, a angustiante formação (ou deformação) de um menino, Sérgio, dentro de um internato privado no Rio de Janeiro, o Ateneu, dirigido pelo despótico proprietário do estabelecimento, o professor Aristarco. Com o tempo e a adoção do livro pelas escolas e universidades, a recepção do romance o enrijeceu, como se dá habitualmente com obras literárias tarjadas como “clássicas”. O lançamento de uma nova edição em capa dura de O Ateneu (Zahar. 264 páginas, livro impresso: R$ 39,90; livro digital: R$ 19,90) ajuda a repensar na contribuição e na força da narrativa de Raul Pompeia (1863-1895). Ela é comentada por Aluízio Leite e apresentada por Ivan Marques. Ambos os estudiosos oferecem novas formas de leitura do texto. Assim, O Ateneu parece retornar ao enorme impacto que exerceu junto aos primeiros leitores.

Ilustração de Raul Pompeia (Foto: Reprodução)O crítico Araripe Júnior foi proneiro em apontar o valor da obra. Em 1889, ele escreveu que os doze capítulos do livro exibiam um “tom de pânico” numa narrativa fragmentária que lembrava as imagens em movimento da lanterna mágica. Os “gnomos verbais” criados pelo jovem Pompeia (que tinha 25 anos quando lançou o livro), segundo Araripe Júnior, surpreendiam ainda mais pelas impropriedades vocabulares. O crítico José Veríssimo considerou o romance uma acabada representação do naturalismo no Brasil.

No entanto, os termos para defini-lo se alteraram à media que cresceu sua fortuna crítica, nos séculos XX e XXI. O poeta e líder modernista Mário de Andrade, conforme mostra Ivan Marques em sua apresentação, chamou a atenção para o caráter vingativo da história contada por Sérgio e da “concepção pessimista do homem-besta, dominado pelo mal, incapaz de vencer seus instintos baixos”. Lúcia Miguel-Pereira rejeitou a qualificação naturalista e encarou o romance como psicológico e uma denúncia escabrosa aos métodos de ensino arcaicos no Brasil do fim do século XIX. Para Ivan Marques, o romance não é apenas formativo, um exemplo pioneiro de Bildungsroman (Romance de Formação) na literatura brasileira, mas destrutivo e ao mesmo tempo sensual, com referências veladas ao homossexualismo de alguns dos personagens do livro, inclusive Sérgio – que, no final, apaixona-se por uma mulher, D. Ema, a insinuante esposa de Aristarco. Romance de formação, deformação, crônica de saudade e destruição. O Ateneu, de acordo com Marques, “segue resistindo às interpretações”.

As interpretações, no entanto, continuam a ser tentadas. É possível, por exemplo, sugerir uma leitura tendo em conta os desenhos de Pompeia. Dessa forma,  o romance pode ser lido como uma espécie de romance gráfico. Explica-se: a primeira edição de O Ateneu trazia uma peculiaridade, pois vinha com 43 desenhos a crayon do próprio autor – reproduzidas com grande qualidade na edição da Zahar. Se a narrativa era fantasmagórica – envolta em “psicologismo idealista com tendências simbólicas”, na definição de Sílvio Romero ainda no século XIX -, os desenhos davam uma dimensão nova e extravagante ao livro, com cenas figurativas e sombrias. A influência de gravuristas românticos como Gustave Doré é evidente no traço de Pompeia. Mas ele buscou via desenho, materializar e tornar nítidos alguns caracteres e cenários, criando uma interação com o texto. Os desenhos não oferecem uma rasura ou uma instância de estranhamento, e sim um complemento que integra o objeto artístico livro. Da mesma forma que as graphic novels atuais, as ilustrações têm a função de impor um conjunto de imagens ao leitor – ou, como afirmou o crítico José Paulo Paes, elas serviriam como vetores para a leitura.

Ilustração de Raul Pompeia (Foto: Reprodução)Os desenhos apresentam um viés que vai além da intenção ilustrativa e evocativa. Eles se impõem como elementos formadores da  narrativa. De algum modo, as ilustrações se juntam à história para formar um único amálgama. Eles também descrevem o trabalho artístico do autor, num processo de metalinguagem. É o que acontece no capítulo 7. Numa pausa de repulsas e encantamentos, Sérgio descreve, em tom satírico, a exposição de desenhos dos alunos, os “pequenos patifes”, na qual ele brilha e a qual ele desmerece.

Os desenhos são pregados às paredes da sala de aula, com molduras de friso de ouro. As carteiras são retiradas do recinto, para simular uma galeria. Sérgio apresenta seus desenhos e conta sua evolução artística : “Eu fizera o meu sucessozinho no desenho, e a garatuja evoluíra no meu traço, de modo a merecer encômios (...) Depois de muito moinho velho, muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, mostrando as misérias como um mendigo, muita pirâmide de torre aldeã esboçada nos último planos, muita figurinha vaga de camponesa, lenço em triângulo pelas costas, rotundas ancas, sias grossas em pregas, sapatões em curva, passei ao desenho das grandes cópias, pedaços de rosto humano, cabeças completas, cabeças de corcel, cheguei à ousadia de copiar com toda a magnificência das sedas, toa a graça forte do movimento, uma cabra do Tibete!” O tom de autocrítico e derrisório se evidencia nessa passagem, como a revelar o traço destrutivo do personagem.

Nos desenhos, como na trama contada, o leitor é tentado a extrapolar a situação do personagem Sérgio para a biografia real do autor. Pompeia suicidou-se em 1895 durante uma polêmica em jornais, na qual seu oponente o enxovalhava publicamente, insinuando a sua homossexualidade.  O Ateneu deve ser interpretado, portanto, como a vingança do autor contra as instituições - e como um bilhete precoce de suicídio.

Arte O Ateneu

Leia aqui o primeiro capítulo da edição ilustrada e comentada.

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