Letra Nova

O testamento incompleto de José Saramago

O escritor português deixou esboços de um romance contra a guerra, agora lançado em livro


Luís Antônio Giron, do cmais+ | foto União Brasileira de Escritores Literatura

31/10/14 11:35 - Atualizado em 31/10/14 11:58

José SaramagoAlabardas, alabardas, espingardas, espingardas é o título do romance inacabado do português José Saramago (1922-2010). O texto acaba de chegar ao mercado brasileiro (Companhia das Letras). Depois de lançar seu último romance, Caim, o décimo sétimo de sua carreira, em agosto de 2009, Saramago, com 87 anos, ficou muito doente: ele sofria de leucemia. Reduziu as viagens e se recolheu à sua casa na ilha espanhola de Lanzarote, sob os cuidados de sua mulher, Pilar del Río. Apesar da saúde precária e consciente de que seus dias estavam contados, Saramago tinha esperança em escrever mais um livro. E anotou no laptop que levava para todo canto: “Afinal, talvez ainda vá escrever mais um livro”. Não conseguiu.

Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, cujo título foi inspirado nos versos da tragicomédia Exortação da guerra, de Gil Vicente, publicada em 1513, é uma antiexortação da guerra. A ideia de Saramago era fazer um libelo antibélico.  Teria sido mais um entre as dezenas de alegorias políticas criadas por Saramago, que viveu e morreu comunista. Nas anotações para o livro, ele diz que criou a história a partir de uma preocupação: saber por que jamais houve greves na indústria de armamento. Teria sido o décimo oitavo romance de uma carreira iniciada em 1947. E teria se enquadrado na série ficcional do autor. 

Esse vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1998 (o único outorgado a um autor em língua portuguesa) escreveu romances que tratam das vaidades e injustiças humanas. Seu estilo ficou lendário: ele escrevia sem parágrafos ou pontos finais, dando a impressão ilusória de texto escrito às pressas. Não surpreende, portanto, que o último trecho que deixou, em outubro de 2009, nove meses antes de morrer, não contenha vírgula: “Ofício, tem, não se queixe, Nada que outra pessoa não pudesse fazer”. Neste caso, não parece ter sido proposital. Ele parecia estar com pressa em dar continuidade ao livro, como demonstram suas últimas anotações, juntadas ao final do texto.

O esboço do romance contém apenas 22 páginas divididas em três capítulos. Mas é possível imaginar no que a obra se transformaria. O livro narra as agruras de Artur Paz Semedo (trocadilho com “paz sem medo”), funcionário exemplar de uma fábrica de armas, a Belona S.A. Artur; é feliz e acredita nos benefícios da indústria da guerra, até que sua mulher, a pacifista Berta, o abandona por não concordar com sua profissão. Sua revolta é tão grande que troca o nome para Felícia. Podemos imaginar o que se seguiria: a guerra conjugal de Artur e a luta contra a própria consciência.

Os romances interrompidos por morte costumam induzir o leitor a acompanhar a tragédia e o último suspiro do autor. O leitor já conhece o fim extraliterário da narrativa. Assim, tendemos a percorrê-la a contrapelo, a buscar rastros ou insinuações do que poderia ter sido o epílogo propriamente literário da história em questão. É como imaginarmos a biografia de uma máscara mortuária. O molde se torna mais forte do que aquilo que veio antes dele, a força vital que moveu aquele rosto e que desfalece no meio da batalha.

Nesses termos, tudo o que lemos ganha um “pathos” e nos provoca compaixão ou mesmo horror. Sentimos pena, em especial pena de nós mesmos, leitores, com a interrupção do romance humorístico Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert, e da heptalogia Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. E provoca horror o fato de que nunca saberemos a identidade do  assassino do romance policial O mistério de Edwin Drood, de Charles Dickens, ou o que queria dizer David Foster Wallace com o romance The pale king, do qual deixou uma quantidade imensa de  fragmentos mais ou menos desconexos.

No caso de Saramago, o livro inconcluso provoca risos – e a pena de que ele não o tenha concluído. O volume vale a pena pelo efeito patético e tragicômico que ele provoca. Saramago não deixou o leitor com dúvida sobre como se desenrolaria a trama. Em uma anotação feita em 16 de novembro de 2009, ele antecipou o trecho final do romance, uma discussão entre Paz Semedo de Felícia. “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’, proferido por ela. Um remate exemplar.” Aí está: um livro incompleto pode provocar o riso. A máscara mortuária de José Saramago eterniza um sorriso irônico.

A edição brasileira livro traz textos adicionais de três autores os estudiosos Fernando Gómez Aguillera e Luis Eduardo Soares e o escritor italiano Roberto Saviano. O trio tenta discorrer sobre a ausência de Saramago e explicar o inexplicável. A verdade é que nunca mais leremos um novo romance de José Saramago.

Leia um trecho do livro.

Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas - José Saramago (Capa) - Companhia das Letras

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