Letra Nova

O novo manifesto de Augusto de Campos

O poeta, crítico e tradutor diz que a poesia e a vida musical retrocederam: “O Brasil está cem anos atrasado”


Luís Antônio Giron, do cmais+ Arte & Cultura

02/10/14 16:37 - Atualizado em 02/10/14 16:51

Augusto de CamposO tempo passou muito rápido, segundo o poeta Augusto de Campos. Talvez por isso ele continue a fazer aos 83 anos as mesmas coisas que faz desde a adolescência: traduzir poetas experimentais, discutir música contemporânea e montar poemas visuais e interativos. Também é a razão de ele analisar a cultura contemporânea de uma forma crítica e incisiva, que lembra os antigos manifestos que ele lançou nos anos 1950. No início da carreira, fundou com o irmão Haroldo de Campos (1929-2003) e o amigo Décio Pignatari (1927-2012) o movimento concreto, que preconizava a explosão do código verbal e a aproximação da poesia às artes visuais. Da premissa nasceram os “poemas ideogramas” que alteraram a forma de fazer poesia – e colecionaram inimigos estéticos definitivos. A inveja parece eterna, pelo menos no que diz respeito aos opositores dos poetas concretos em particular e da arte concreta em geral. Até hoje a obra deles provoca reações indignadas, numa prova de que a inovação incomoda e a força da arte concreta ainda persiste, mesmo tendo sido ultrapassada, talvez, por ulteriores vertentes experimentais. Mesmo assim, a expressão “poeta concreto” soa como um palavrão para muita gente.

Augusto pode ser descrito como um oitentão jovial, vigoroso, bem-humorado, coloquial-irônico, dotado de uma capacidade de argumentação e uma memória extraordinárias. Advogado aposentado (diríamos ‘aposentado e perigoso”, como no filme estrelado por John Malkovich), casado e avô, ele continua a morar no bairro das Perdizes, onde sempre morou. O apartamento é decorado com telas com artistas de vanguarda. Óleos de Hermelindo Fiaminghi (1920-2004) figuram lado a lado de cartazes com poemas concretos criados por Augusto, que não se diferenciam muito das telas. Sua biblioteca é tão pequena como abarrotada de livros e CDs – e, mesmo assim, muito confortável.

O poeta não se deixa enganar pela zona de conforto. Cada fala sua assume o aspecto de manifesto. Não estampa mais ensaios e seus poemas (que entregava já diagramados) em jornais, mas na internet. Acaba de publicar no site Zunai um conjunto de traduções de poemas juvenis do russo Vladímir Maiakóvski, poeta ao qual retorna de tempos em tempos. Seu maior best-seller Pagu: vida-obra, lançado em 1983 pela editora Brasiliense, biografia da escritora modernista e ativista política Patrícia Galvão (1902-1962), ganha a quarta edição pela companhia das Letras, com revisões e um projeto gráfico mais sofisticado. “Não tem muita coisa nova”, afirma ao cmais. “ Mas eu corrigi erros, informações. Aumentei bibliografia, incluí um texto, acrescentei uma entrevista muito boa que eu fiz com o Mário Sérgio Conti. A edição vai ter maior qualidade em ilustrações. Bem melhor que a parte iconográfica do livro pela editora Brasiliense que teve três edições e foi bem, diferente do que aconteceu com outros livros nossos.”

A visita aconteceu em 15 de setembro. Augusto nos recebeu – o poeta Fábio Malavoglia, apresentador do programa Rádio Metrópolis da rádio Cultura FM e este repórter – com gentileza e simpatia (ouça trecho da entrevista abaixo).  “Estou com tempo agora”, diz. “Eu acabei de terminar meu livro de ensaios sobre música.” Além disso, está com dois livros a ser publicados pela editora Perspectiva, sem data prevista de lançamento: um volume de poemas escritos nos últimos dez anos cujo título não revela e Música de Invenção 2, reunião de ensaios sobre música contemporânea. “Sempre produzi pouca poesia”, diz. Ele contou que nos últimos 30 anos, tem composto poemas “verbo-voco-visuais”, como diz, no computador. Não está otimista com a poesia jovem brasileira, mergulhada, afirma, no pós-modernismo, uma máscara para praticar arte pré-moderna. Segundo ele, os poetas deveriam se atualizar aprender a trabalhar no meio digital. Ele não quer se meter na poesia dos novos. “Poetas velhos não têm que se meter com poetas novos”, diz (leia a íntegra da entrevista).

Sua preocupação hoje é com aquilo que ele chama de um escândalo: o fato de a música erudita contemporânea ter sido alijada do público brasileiro. “Eu considero uma das maiores tragédias culturais brasileiras o fato de o público não se ter praticamente acesso ao que aconteceu na música erudita moderna, na chamada música contemporânea, num gap de cem anos. O Brasil está cem anos atrasado.” E reforça: “Um século de atraso! Como se o público brasileiro não tivesse inteligência e sensibilidade para ouvir música de alto repertório.” Indigna-se porque o século XX acabou e quase ninguém conhece a música que foi feita no período. Como se não bastasse, o século XX já tem 14 anos e poucos conhecem os compositores atuais. Augusto queria que seus textos ajudassem a derrubar o “star system” da música clássica, que entronizou o repertório do Romantismo em detrimento da música criativa e atual. Sobre a música popular, diz que já fez o suficiente por ela. “Hoje a música popular é vencedora. Preciso ajudar a erudita contemporânea.” Mas avisa: “Não sou historiador de música nem musicólogo no sentido mais estrito da palavra. Faço uma crítica stop-gap, tapa-buraco. Eu vou onde acho que está faltando e as pessoas desconhecem”.

Augusto continua a seguir o breviário da revolução das artes e o rompimento com a tradição. Ele adquiriu a crença na juventude, quando se apaixonou pelas vanguardas artísticas do início do século XX impulsionadas pela revolução da tecnologia. Foi assim que participou da fundação do movimento concreto em 1955. A onda começou pela poesia, e se expandiu para as artes plásticas e a música. Foi um dos movimentos artísticos mais influentes dos anos 1960. Colocou em xeque a literatura baseada mais no conteúdo que na forma. Educou o público para a arte geométrica. Como conceito de “linha evolutiva da música popular brasileira”, ajudou a consagrar a Bossa Nova e a Tropicália. Augusto discorre sobre as várias vertentes do concretismo como da primeira vez em que foi interrogado sobre o tema. Um tema ainda polêmico passados mais de 60 anos do início do movimento.

A paixão pela controvérsia parece lhe dar força para continuar a debater, analisar e manter a racionalidade, além de possuir uma inquebrantável teimosia. “Sou um sobrevivente”, afirma. “Sobrevivente de uma geração de companheiros de viagens artísticas que já se foram, ligados à arte experimental e à arte nova.”.

Ainda que tenha reunido muitos artistas, o concretismo nasceu do trio Décio, Augusto e Haroldo. E o marco zero do movimento resultou de uma união informal. Em 1948, os três jovens, com idades entre 18 e 22 anos, estudavam na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Formar-se em Direito não era só uma questão de sobrevivência profissional. Também servia de pretexto para o trio se manter ligados e, assim, cultivar uma inclinação comum: ler e escrever poesia.

São Paulo fervilhava. A cidade se tornava uma metrópole e se equipava de instituições culturais: museus, galerias, salas de concerto, teatros, espaços dedicados ao cinema de arte, livrarias e revistas literárias. A informação internacional circulava com maior rapidez, e o trio se nutria da literatura inovadora de poetas como Ezra Pound, e.e. cummings, Vladímir Maiakóvski, T.S. Eliot e de prosadores como James Joyce e o brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954), último baluarte do Modernismo de 1922 ainda em atividade .

O trio logo teve de se defrontar com a poesia em moda: a Geração de 45, incentivada por Antonio Candido, professor de Literatura da USP, ensaísta e editor da revista literária Clima. Haroldo, Augusto e Décio não se conformavam com o conservadorismo de seus colegas. Eles enxergavam o poema como campo de revolução da linguagem. Nada ver com os poetas da Geração de 45, que queriam restaurar o poder da metafísica, usando a linguagem como um intermediário dócil. Assim, nutrido nas lições dos autores experimentais e confrontado com o conformismo do ambiente literário doméstico, o trio começou a mostrar seus poemas - e suas garras. A ação parecia quixotesca. Começaram a publicar poemas experimentais. Em 1948, visitaram o velho Oswald, levados pelo poeta e ensaísta tardo-modernista Mário da Silva Brito. Encontraram um homem “rotundo” e bem-humorado, mas doente, pobre e desconsiderado pelo meio literário da moda. A simpatia foi mútua. Oswald lhes deu de presente o único volume de poesia que ainda estava publicado. Os jovens o adotaram como patrono. Foram os concretos que denominaram a poesia de Oswald como “coloquial-irônica”, uma etiqueta difícil de ser desgrudada dele até hoje.

Em 1950, lançaram a revista Noigandres para divulgar poemas experimentais, deles e dos poetas que amavam. O segundo volume da revista, lançado em 1955, defendia a poesia concreta como plataforma de uma revolução formal. O movimento se consolidou na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1956. Novos poetas se aproximaram. O poeta maranhense Ferreira Gullar, futuro detrator do movimento, exibiu então seus primeiros poemas visuais. A Noigandres rendeu cinco edições, a última em 1967. Foi uma revista influente, apesar das tiragens restritas, de cerca de 500 exemplares por volume.

A Noigandres e a mostra no MAM renderiam quase 60 anos de polêmicas, rompimentos e inimizades. Para defender suas ideias, o trio se viu obrigado a lançar manifestos. O primeiro saiu em dezembro 1956 na revista ad. “Poesia concreta: um manifesto” começa pela seguinte premissa geral: “A poesia concreta começa por assumir uma responsabilidade total perante a linguagem: aceitando o pressuposto do idioma histórico como núcleo indispensável de comunicação, recusa-se a absorver as palavras com meros veículos indiferentes, sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabu com que a convenção insiste em sepultar a ideia”. Pareciam proposições cifradas, mas hoje soam evidentes, principalmente esta: “O poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de funções”. Augusto e companheiros lançaram manifestos até 1960. Entre 1962 e 1967, lançaram cinco números da revista Invenção: Revista de Arte e Vanguarda. Depois, divulgaram esses textos. Augusto mostrou-os ao jovem Caetano Veloso – que criaria com o amigo Gilberto Gil o próprio manifesto: a canção-disco “Tropicália”, de 1968.

Augusto acha que a poesia concreta cumpriu o seu ciclo. E lançou modelos de inconformismo que ainda são aplicados, elaborados e ultrapassados.  Na poesia, autores como Frederico Barbosa e Arnaldo Antunes continuam a linhagem da ruptura permanente. E há muita canção brasileira contaminada pelos procedimentos concretistas.

“Quero ser conhecido não como poeta concreto, mas como poeta”, afirma Augusto de Campos. “Embora você não possa negar a corcunda que o tempo lhe deu.”

Uma corcunda ainda capaz de lançar chamas.

Pagu: Vida e Obra  (Ed. Companhia das Letras)

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