Letra Nova

Uma conversão embaraçosa

No romance Submissão, Michel Houellebecq narra a derrota da cultura ocidental em uma França submetida ao islamismo em 2022. É para tanto?


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

28/05/15 12:29 - Atualizado em 19/06/15 15:20

Michel Houellebecq (Foto: Miguel Medinamiguel)
Michel Houellebecq, autor de Submissão (Foto: Miguel Medinamiguel)

O romance Submissão (Alfaguara, 254 páginas, R$ 39,90, tradução de Rosa Freire d’Aguiar), do francês Michel Houelllebecq ganhou status de objeto cultural histórico porque servia como manchete do semanário satírico Charlie Hebdo no dia 7 de janeiro de 2015, quando a redação do jornal foi invadida por dois militantes islâmicos e 12 pessoas foram assassinadas. Uma caricatura de Houbellebecq ilustrava a capa, que exaltava o enredo do novo livro do autor: a história de um político muçulmano moderado que se torna presidente da França em 2022 e, aos poucos, estabelece a lei islâmica e destrói os últimos vestígios da cultura da Velha França.

Houellebecq, de 56 anos, é um militante antiislâmico e suas opiniões ferinas podem ter servido como gota d’água para o ódio da dupla de terroristas. A chacina serviu para aumentar as vendas do livro, lançado logo depois no mundo inteiro. Mas Submissão é mais que um sucesso de escândalo. É um romance que capta o espírito do tempo, para satirizá-lo.

Sátiras servem para castigar os costumes pelo riso, como ensina o ditado latino “Satira ridendo castigat mores”. O medo de Houellebecq – e de grande parte dos franceses – é que a cultura francesa seja aniquilada pela influência muçulmana no país, que já conta com 4, 7  milhões de muçulmanos, 7,5% da população, a maior porcentagem entre os países da Europa Ocidental. Talvez seja exagero projetar a dominação cultural muçulmana no coração da cultura ocidental. Mas a forma como o narrador descreve os acontecimentos soa provável. Afinal, o candidato Mohamaed Ben Abbes se vale da lendária tolerância dos franceses para impor aos poucos a sharia, a lei de Maomé. Como se não bastasse, Abbes consegue convencer alguns dos intelectuais mais renomados de Paris a se converter ao islamismo “moderado” da Fraternidade Muçulmana, que lidera sempre com um sorriso compassivo.

Um dos alvos da conversão é o professor François, um intelectual parisiense cansado da carne e entediado com todos os livros que leu. Ele é especialista na obra do romancista Joris-Karl Huysmans (1848-1907), um autor do final do século XIX conhecido por ter trocado o satanismo pelo catolicismo no fim da carreira. Huysmans é o autor de um grande romance ultradecadentista  À rebours (Pelo avesso, 1884) e por Là-bas (1891), uma fantasia sobre rituais satânicos na França. Em seguida, em 1895, Huysmans se converteu ao catolicismo, em um gesto de total reverência à Cúria Romana. Sua conversão espetacular ainda intriga seus especialistas. É o caso de François, que, assim como seu objeto de estudo, também troca o ceticismo pela “soumission” ao código estrito de Maomé. Só que o faz lentamente, convencendo-se que o melhor caminho é aderir em vez de combater.

Assim, Houellebecq penetra na psique do francês para denunciar a flacidez de suas convicções no laicismo e nos valores democráticos. O livro é escrito em primeira pessoa e descreve a decadência da vida intelectual de François – um percurso semelhante ao de seu ídolo Huysmans. A arte narrativa de Houellebecq é tão engenhosa que pode convencer o leitor desavisado de que a servidão religiosa pode ser não apenas viável, como reconfortante. Uma conversão embaraçosa pode virar redentora. Mas, felizmente, Submissão deve ser compreendido como a sátira destes tempos instáveis e crédulos.

Leia aqui um trecho de Submissão

 
Submissão, de Michel Houellebecq (Imagem: Divulgação)

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