Letra Nova

Quando a loucura encontra o método

Conhecido por seu estilo anárquico e pop, Reinaldo Moraes conta como bebeu na fonte de Camões e Vieira para escrever romances e crônicas sobre sexo, reunidas em livro


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

12/03/15 16:56 - Atualizado em 12/03/15 20:34

Letra Nova

Reinaldo Moraes (Foto: Maria do Carmo)
Reinaldo Moraes, autor de O Cheirinho do Amor (Foto: Maria do Carmo)

O paulistano Reinaldo Moraes, de 65 anos, é um escritor de rajadas surpreendentes, que surgem, somem e voltam ao sabor do tempo e dos caprichos do autor. Ele pode parar por longos anos e retornar, retomando a linha que perseguia e que havia perdido como se nada tivesse mudado. Se curtiu o esquecimento por 17 anos, de 1985 a 2003, conseguiu inverter a situação nos anos 2000. O fato foi que os leitores se esqueceram do esquecimento e o reentronizaram como autor maior, como se nada tivesse acontecido. Ele pode ser considerado um representante do cânone literário dos anos 80. Ganhou prestígio em 1981 com o romance Tanto faz, pela maneira niilista e bem-humorada com que tratava dos dilemas da sua juventude. Em 1985 veio Abacaxi, outro romance com o Zeitgeist: sexo, drogas, música e uma absoluta falta de esperança. Os livros de Moraes simbolizavam a juventude brasileira da década perdida. Ele poderia ter ficado como um nome expressivo do século passado. Mas conseguiu sobreviver.

A década de 2000 marcou a sua rentrée literária. Publicou o romance juvenil A órbita dos caracóis (2003), os contos reunidos no volumeUmidade (2005) e, em 2009, sua obra mais festejada: o romance Pornopopeia. Essa narrativa de mil páginas e criatividade irrefreável acompanha o percurso infernal de Zeca, um cineasta que faz comerciais e se envolve com drogas e quadrilhas. No meio de uma campanha publicitária para uma fábrica de embutidos, Zeca se dá uma pausa para refletir sobre o estatuto da arte: “Volto a perguntar: qual a diferença entre arte e embutidos de frango? Ou melhor: por que embutidos de frango não podem se transformar em arte?”

Por que não? Como sua criatura, Moraes é um criador obcecado pelo reconhecimento artístico. Mesmo em gêneros considerados menores, como a crônica, ele se esmera em pensar e surpreender. Acaba de lançar o volume O cheirinho do amor – crônicas safadas (Alfaguara, 264 áginas, R$ 29,90). Trata-se de uma seleção de crônicas publicadas entre março de 2011 e maio de 2014 na revista erótica Status. Moraes selecionou os melhores textos, que tratam de literatura, Sade, futebol, feministas de topless e outras bizarrices desta segunda década do século XXI. Muitos textos foram reelaborados. “Acontece que sou um escritor compulsivo, e não há tarja preta que dê jeito nisso”, diz.

Mesmo que por vezes o cronista se autodenomine de “sátiro caquético” e entre em detalhes escatológicos, nada é o que parece nas safadezas literárias de Moraes. Sob a desculpa do erotismo, ele é capaz de elaborar argumentos incomuns no gênero soft-porn, tão em moda atualmente. Pergunta-se, por exemplo, como uma garota bonita como a americana Star foi capaz de se apaixonar perdidamente pelo demoníaco Charles Manson, líder de uma seita de garotas assassinas que trucidaram a atriz Sharon Tate em 1969 na Califórnia. “Um feminista avançado, esse Manson, dando chance às mulheres de cometer as atrocidades que normalmente têm ficado a cargo dos homens na história do planeta.” Moraes não impõe limites à liberdade de pensar. Especula sobre a racionalidade da poligamia, sexo no espaço sideral, sexo malabarísticos e tartarugas tântricas.

Moraes está escrevendo um romance, intitulado Maior que o mundo. O protagonista tinha que ser um anão megalomaníaco. É o leitor espera de Renaldo Moraes.  O que talvez ele não espera é que, mesmo com o prontuário caótico, Moraes se inspirou nos autores clássicos portugueses para formar o próprio estilo . “LI muito Camões e Vieira na juventude, de pura metidez”, conta ao Cmais (leia entrevista abaixo). “É água da fonte. Todo escritor lusófono deveria beber uns copos dessa água antes de deitar falação no papel.”

Espelhado nos grandes autores, também encontrou seu método de escrever: “Depois de anos trabalhando num romance, ou de meses num conto, qualquer loucura tende a encontrar seu método. Aquele bardo de Stratford-upon-Avon já sabia disso.” Ele adianta que Maior que o mundo deverá ser uma espécie de “Pornopopeia 2”, ou seja, um roman-fleuve em que todas as invenções e loucuras narrativas são possíveis ao correr da pena, ou dos dedos sobre o teclado. Para transgredir, no entanto, ele tem necessidade de rotinas.  “Tenho escrito antes, durante e depois de escrever. Acordo cedo, entre 6 e 7,  e começo a escrever”, afirma.“ Depois do almoço, passo umas  3 horas lendo e cochilando. Escrevo nos fins de semana, em viagens de férias ou a trabalho. Escrevo todo santo dia, enfim. E, se for ver, também escrevo dormindo, já que a dimensão onírica da vida é, por excelência, o território primitivo de toda fabulação.”

Eis aí um escritor 24/7, que se pergunta por que escreve e trabalha sem parar, em busca da palavra exata – mesmo que a exatidão não seja bela nem pura.

Entrevista

Reinaldo Moraes

“Escrever ficção é uma atividade antiquada, obsoleta e de baixíssima remuneração”

Cmais - Você apelidou suas crônicas de “crônicas safadas”? Você acha o sexo uma safadeza hoje em dia apesar da liberação da libertinagem? Não seria uma expressão de alguma forma moralista?

Reinaldo Moraes - É verdade, o adjetivo "safadas" carrega certo moralismo de praxe quando se trata de fazer humor com sexo, sobretudo no Brasil. Nunca fiz humor com sexo na Suécia, mas por aqui a gente ainda tem um pano de fundo moralista católico-ibérico atrasado contra o qual se projeta toda uma legião de "desejos escusos". Vide Nelson Rodrigues e seu eterno tesão pela figura da cunhada.

Cmais - Como foi a gênese do volume O cheirinho do amor? Foi convite da revista? Vale a pena publicar coletânea de textos escritos na imprensa? Como lidar com o caráter efêmero dos textos? Enfim, os textos que você escolheu para constar da coletânea são textos para ficar?

Moraes - Impossível saber agora se os textos do Cheirinho "ficarão." Difícil também determinar se textos de vida útil efêmera merecem ser publicados. Mas penso que a crônica tem um caráter fruitivo e conjuntural que praticamente a define como gênero literário. Pegue uma crônica do Machado de Assis tirando uma onda com as picuinhas parlamentares do segundo império e veja se aquilo não te soa deliciosamente efêmero. Em todo caso, voltamos a conversar daqui a cem anos pra ver o que ficou, o que se perdeu na poeira da história.

Cmais - Suas crônicas refletem não apenas sobre sexo, mas sobre a vida, a contemporaneidade etc. Por que você privilegiou o ângulo do sexo para tecer suas reflexões meta-físicas?

Moraes - Como você mesmo sugere no seu trocadilho meta-físico, o sexo é a carne sublimada pelo desejo e pela fantasia. Quem mete sempre vai além do físico. A "pequena morte" abre as portas da percepção para a alma insondável. E se você pegar uma AIDS pode te abrir também as portas para o além.

Cmais - Como escritor, você sempre passou a imagem de caótico. É verdade que você mais improvisa do que planeja em sua obra ficcional? Ou é um mito e você é um cara sistemático?

Moraes - Depois de anos trabalhando num romance, ou de meses num conto, qualquer loucura tende a encontrar seu método. Aquele bardo de Stratford-upon-Avon já sabia disso.

Cmais - Você mudou o método de escrever ao longo do tempo e das necessidades. Como você faz agora? Estabeleceu um horário para escrever, como um funcionário público (ou funcionário “púbico” no caso de O cheirinho do amor)?

Moraes - Tenho escrito antes, durante e depois de escrever. Acordo cedo, entre 6 e 7 horas da manhã,  e começo a escrever. Depois do almoço, passo umas três horas lendo e cochilando. Escrevo nos fins de semana, em viagens de férias ou a trabalho. Escrevo todo santo dia, enfim. E, se for ver, também escrevo dormindo, já que a dimensão onírica da vida é, por excelência, o território primitivo de toda fabulação.

Cmais -  Concordo com o Matthew Shirts que Pornopopeia é talvez o romance mais engraçado já publicado no Brasil. Que opinião você tem do romance hoje? Não está na hora de uma Pornopopeia 2?

Moraes - Estou no meio de um romance aparentado com Pornopopeia. Dei umas tantas páginas pro Matt ler e ele veio com essa: "É o Pornopopeia 2, dessa vez com anão." Pois é, de fato, tem um anão no romance, cujo título deverá ser "Maior que o mundo".

Cmais - Faça um breve balanço autocrítico de sua obra literária, por favor.

Moraes - É uma obra de qualidade tão alta quanto me foi possível erguê-la.

Cmais - Por que você devota a vida a escrever? Não é uma atividade angustiante?

Moraes - Além de angustiante, escrever ficção é uma atividade antiquada, obsoleta e de baixíssima remuneração. Seria uma forma nobre de masoquismo? É o que eu já estou cansado de me perguntar.

Cmais - Você menciona vários autores em seus livros. Mas quais foram realmente fundamentais para sua obra?

Moraes - Acho mais importantes as vozes da memória e do inconsciente, onde se confundem os personagens da minha comédia humana pessoal com os da literatura. É quase impossível distingui-las.

Cmais - Você tem amor à língua portuguesa, baseia-se nos estilos dos autores clássicos?

Moraes - LI muito Camões e Vieira na juventude, de pura metidez. É água da fonte. Todo escritor lusófono deveria beber uns copos dessa água antes de deitar falação no papel.

Cmais - Você poderia definir o seu estilo? Improvisado, stream of consciousness, pós-pop?

Moraes - Acho que tô mais pra extreme of popcorn-inconsciousness.

Cmais - Conte-nos a primeira história que você publicou...

Moraes - Eu tinha uns 22 anos e o conto era pruma revista masculina de quinta, senão me engano chamada “Homem Privê”. Era sobre um flâneur que anda pelas ruas caçando mulheres com o olhar. Só com o olhar. Um voyeur onanista, já se vê...

Cmais - Como você analisa a literatura brasileira atual? Há autores significativos ou vivemos um surto de networking literário que esconde a falta de conteúdo das obras?

Moraes - Eu tenho uma pilha de livros de autores novos e velhos que não acho tempo de ler. Nesse momento estou metido com o argentino Leopoldo Marechal (Adán Buenosaires, de 1948) , com o último do americano Thomas Pynchon, Inherent vice, e com o último livro de contos do Antonio Carlos Viana: Jeito de matar lagartas, excelente. Ou seja, estou lendo só um brasileiro contemporâneo por esses dias. Se eu for julgar toda a trupe literária brasuca pelo Viana, saímos todos muito bem na foto.

Cmais - Como é ser escritor no Brasil, enfim?

Moraes - Literatura uma espécie de hobby que consome todo o seu sangue e todas as suas horas úteis e inúteis. Se o português fosse uma língua mundialmente hegemônica, como o inglês, minha resposta seria diferente. Eu diria que ser escritor é uma profissão, e não um hobby, e que consome só metade do seu sangue e das suas horas.

Leia aqui uma das crônicas de O Cheirinho do Amor

O Cheirinho do Amor (Foto: Reprodução)

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