Letra Nova

Com a mente cheia de fantasmas

A compulsão de contar histórias fez de Luisa Geisler uma das autoras jovens mais produtivas da ficção brasileira


Luís Antônio Giron, do cmais+ Arte & Cultura

12/09/14 11:42 - Atualizado em 12/09/14 11:59

A vida de Henrique desponta para o fracasso. Aos 24 anos,  não estuda mais e está em busca de um trabalho que ele nunca acha. É introspectivo e não consegue fugir da vidinha medíocre onde foi criado. Tem um círculo de amigos ainda mais desimportantes que ele. Pior, mora em Canoas, uma cidade industrial da Grande Porto Alegre replanejada para se converter em um lugar de passagem, com autoestradas e uma linha de trem. Nesse cotidiano feito de “trem, trem, trem”, ele se sente forasteiro quando às vezes vai para Porto Alegre se encontrar com os amigos. São apenas 30 quilômetros de sua casa, mas a sensação de estranhamento é completa. Ele se sente estrangeiro até mesmo na cidade natal, sacudida pelo trânsito e enfeiada pelas fábricas e casas de classe média baixa. Seu melhor amigo, Gabriel, está em coma  no hospital. Apesar de ser um jovem envolvido na redes sociais, Henrique se consola escrevendo cartas ao amigo desenganado, que nunca as lerá.

Eis aí o argumento do livro Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 296 páginas, R$ 39,90), de Luisa Geiser. A autora tem muito em comum com o personagem: aos 23 anos, ela nasceu e vive em Canoas, pega o trem todos os dias e conhece o cotidiano “ferrado”, como diz, dos canoenses de sua geração. Luisa usa a internet, mas prefere observar a vida off-line quando pega o trem. Como Henrique, ela escreve sem parar. É neste ponto que Luisa se distancia  de seu anti-herói. Por escrever e se jogar na paixão da escrita, ela se converteu em uma das jovens escritoras brasileiras de maior renome da atualidade. Estreou anos com o volume de contos Histórias de mentira (Record), pelo qual ganhou o Prêmio Sesc de Literatura de 2011. Tinha apenas 19 anos.

“Eu sempre quis criar coisas. Eu teria feito filmes se não custasse muito dinheiro. A literatura veio a calhar comigo. Comecei a escrever e me veio uma ideia a partir de uma reportagem que li sobre o fato de que as pessoas falam pelo menos dez mentiras por dia”, diz. Ela tinha participado da oficina de criação literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil. “Ter feito a oficina me ajudou a saber quando o texto estava pronto. Aprendi que não há regras fixas para escrever. O importante é editar o texto.”

Luisa Geisler (Foto: Andressa Andrade)

Em seguida, publicou um romance, Quiçá (Record), que lhe valeu em 2012 o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante. O livro narra à história de um menino que tenta inutilmente se suicidar e passa uma temporada na casa dos tios, entre conflitos com a prima e a família. O livro ganhou fama internacional e foi traduzido e publicado na Espanha.

Ela sabe como poucos autores construir a fama. No meio literário nacional, Luisa ganhou o apelido de “mascote da Granta”. Em 2013, um conto de sua autoria foi escolhido para figurar na edição da revista literária inglesa Granta. A edição em inglês da Granta dedicada aos autores supernovos da literatura brasileira lhe deu projeção internacional. “Foi ótimo porque me tornei conhecida”, diz Luisa, por telefone, no intervalo entre duas aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, onde a cursa Sociologia; faz também  Relações Internacionais na ESPM-RS. “Mas isso não quer dizer que eu tenha mudado meu jeito de escrever por causa disso. Continuo fazendo o que gosto de fazer, que é escrever.”

Segundo ela, escrever é como uma faxina mental. “Eu preciso dar uma limpada na minha cabeça, que está sempre cheia de fantasmas”, afirma. “Adoro dar uma viajada nas histórias que faço, não fico na história linear.” Ela escala o time dos escritores que a influenciaram: “Hemingway, Tchékhov, James Joyce e um pouco de Virginia Woolf.” Escritores que a encorajaram a experimentar novas formas. Foi assim que ela corajosamente adotou coloquialismos gaúchos que em geral são banidos da literatura local – e se tornou um dilema dos autores sul-rio-grandenses: adotar o português padrão ou admitir os barbarismos locais? Luisa não teve dúvidas e se atirou na “barbárie”. Um exemplo do que ela fez é a segunda pessoa do singular conjugada como se fosse terceira pessoa. É um uso de gíria típico do gaúcho. Como quando Henrique escreve em uma carta: “Não me lembro se tu tava junto quando a gente tava na garagem mofada do Pedro sobre ele ter terminado com a Paula.” Poucas vezes um autor do Sul abraçou a gíria local com tamanha desenvoltura, sem medo de parecer uma grosseria.

Luisa afirma que menos pesquisou que ouviu muito os amigos falarem para elaborar essa linguagem tão simples. “A gíria é ainda vista como uma coisa tosca”, diz. “Mas é algo tão natural e verdadeiro que não poderia escrever de outra forma para contar a história de Henrique. Posso garantir que tive muito trabalho para criar o efeito coloquial que eu queria.”

Luisa não tem superstições quando escreve. Gosta de beber café ou chá diante do computador (desligado da internet quando ela escreve), que fica em um determinado cantinho de seu carto em Canoas. “A cidade não é tão horrível quanto o Henrique a descreve”, afirma “Tem a parte do trem, claro, mas há parques e é um lugar bom para criar uma família.”

Luisa é mais otimista que Henrique. Não é para menos. Sua carreira literária mal começou, e ela já está no topo. Mesmo assim, não tem pressa. “Dei um ‘pause’ na literatura por causa das duas faculdades”, afirma. “Estou no último semestre de Sociologia, tenho de ler as coisas do curso.” No final do ano, ela vai dar um “pause” nos estudos e participar de um programa de residência para jovens escritores no estado de Nova York. Vai ficar lá três semanas e pretende então projetar seu quarto livro. E se alguém tem dúvida de que o livro terá qualidade, não é boa parte dos críticos - e muito menos Luisa. “Mas não vou contar a história para não estragar”. 

Leia o primeiro capítulo do livro aqui.

E ouça a íntegra da entrevista no player abaixo:

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