Letra Nova

Leticia Wierzchowski: “A escrita tem uma propriedade curativa”

A autora, famosa pela série A Casa das Sete Mulheres, conta como sobrevive num país hostil à literatura e por que continua a dar vida a personagens


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

25/06/15 19:01 - Atualizado em 26/06/15 10:58

Leticia Wierzchowski
Leticia Wierzchowski, autora de Navegue a lágrima (Foto: Carin Mandelli)

O nome é quase impronunciável, mas seus livros são populares: Leticia Wierzchowski. Essa gaúcha de 43 anos, casada e mãe de dois filhos, faz sucesso desde o primeiro livro, O anjo e o resto de nós, lançado em 1998, quando tinha 26. Seu maior sucesso foi o romance histórico A casa das sete mulheres, de 1992, ambientado no Rio Grande do Sul durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), se deveu à série de televisão que estreou em 2003 e foi exibida em 30 países.

Desde o início, Leticia chamou atenção pela prosa direta, a fabulação fantástica e a capacidade de colocar personagens de pé. É uma  contadora de histórias compulsiva que prefere a reclusão à vida literária a que são forçados quase todos os escritores brasileiros: um vaivém frenético de feira literária em feira literária, obrigados a dar palestras e fazer oficinas de criação. Leticia felizmente se mantém olimpicamente distante do mundinho do networking literário. Até porque ela só parece ter compromisso com os personagens que cria e o público leitor que conquista.

Seu 14º romance, Navegue a lágrima (Intrínseca, 208 páginas, Impresso R$ 34,90; e-book: R$ 17,90), pode ser lido como uma história de mistério. O enigma a ser decifrado está na fronteira entre a ficção e o acontecimento. Há uma narradora, Heloísa, editora desencantada do amor que se isola em uma praia do Uruguai para tentar escrever um livro. Aluga a casa cuja dona era uma escritora de sucesso: Laura Berman. Lentamente, Heloísa se vê envolvida pela atmosfera da vida feliz de Laura, o marido Leon e suas crianças. Começa a escrever, imaginando o passado pulsante da casa. Em certo momento, o leitor se embaralha e não consegue mais saber se ela é a autora ou a personagem. Talvez Heloísa não seja mais que o delírio futurista de Laura.

Mas a camada mais intrigante de Navegue a lágrima esteja mais ao fundo e pouco tenha a ver com fantasia. O livro pode ser compreendido como uma reflexão sobre a escritura – suas origens e seus mistérios. Escrever é como pescar, compara Heloísa: “Eu jogo a isca e fico ali, bem quietinha, à beira do rio da ficção de Laura Berman, e então sinto o cutucar, logo em seguida o arranque furioso do anzol... No meio da turva água das histórias, às vezes m pequeno peixe de realidade salta diante dos meus olhos. Rabaneando contra o céu. Pode ser uma coisinha minúscula, pequena e escorregadia, um pensamento, m olhar, uma rememoração sem maiorimportância no desfecho da cena, mas sinto que aquilo é um pouco de Laura, da essência de Laura, da vida que ela viveu com Leon e com os filhos, como um pequeno fóssil esquecido no meio da areia de uma praia deserta.” Escrever é soprar o fóssil para que ele recomece a respirar. Também é uma forma de cura.

Nesta entrevista ao cmais, Leticia revela onde ela encontra seus fósseis e como ela os desenvolve, até ganharem aquela aparência de vida capaz de atrair o leitor, que é a presa final.

cmais - Por que você resolveu escrever uma história de amor, ainda que com fundo histórico?
Leticia Wierzchowski - Não vejo o livro exatamente como uma história de amor - é mais uma história sobre a felicidade... Sempre penso na frase que abre o romance Ana Kariênina, de Tolstói... “Todas as famílias felizes se parecem, cada família é infeliz à sua maneira”. O livro é um pouco sobre isso, digo um pouco porque um livro é tanto de tudo - passam os anos, e cada vez fica mais difícil para mim dizer do que eu escrevo. Se fosse fácil resumir, juntas todas as ideias, os sentimentos que atravessam e urdem um livro em um conceito, uma frase... Bem, será que eu escreveria o livro?

Mas Navegue a lágrima é sobre a felicidade, e sobre as marcas que a felicidade deixa. Inclusive nos lugares onde ela floresceu - a casa dos Berman, palco de momentos fundamentais, guardaria um pouco da felicidade deles, e é desses vestígios que Heloísa se alimenta para reconstruir a história da família e - também - para curar-se. Mas é claro que a história guarda bastante infelicidade também, nada existe sem o seu contraponto. Agora, sobre o fundo histórico, não sei o vejo muito bem... Ok, se passa nos anos 70, mas apenas porque eu queria chegar com a história até os dias atuais. É uma história com cenários bem atuais, calcada em dilemas modernos.

cmais - Você se notabilizou por um épico histórico – A casa das sete mulheres – e outros romances que igualmente envolveram pesquisa histórica. Como é esse trabalho de pesquisa?
Leticia - Bem, em Navegue a lágrima não houve pesquisa. O cenário - o Uruguai - é um lugar que eu conheço muito bem, pois tenho vínculos familiares, e passo muitos verões por lá. Mas, quando um romance exige uma pesquisa histórica, eu geralmente começo com uma pesquisa ficcional: leio romances de autores que se debruçam sobre o tema ou o espaço do qual eu quero falar, vejo como outros autores criaram o seu mundo de ficção naquele cenário que me interessa. Depois disso, depois de viajar na ficção alheia, vou à pesquisa propriamente dita. Geralmente, pesquiso um pouco para começar, depois sigo escrevendo e pesquisando - a história sempre me leva a ideias e lugares novos, de forma que a pesquisa segue junto à escrita de forma bem orgânica. Eu gosto de estudar, sempre gostei de História. Aliás, tudo na vida são histórias, e até a História é uma versão dos fatos, ou várias. Às vezes, na pesquisa por um livro, surge uma outra ideia maravilhosa. Por exemplo, quando pesquisei para escrever Um farol no pampa (cujo tema central era a Guerra do Paraguai) fiquei com a maior vontade de escrever um romance sobre a amante do Solano López. Ainda não fiz isso...

cmais - Como surge a ideia de um romance? Como surgiu a de Navegue a lágrima?
Leticia - Alguns romances, para mim, surgem do personagem. Outros surgem de um sentimento ou uma inquietação. A gente sempre escreve para entender alguma coisa, e o romance inteiro é uma alegoria dessa viagem rumo ao entendimento. Navegue a lágrima surgiu um pouco da consciência da passagem do tempo, de dar-se conta das transformações desta vida. Também é um jogo com o limite entre a ficção e a realidade, e eu vivo neste limite há tantos anos... Faz 18 anos que lancei meu primeiro romance, O anjo e o resto de nós. Escrevo quase diariamente (são 25 livros, entre adultos e infantis), a minha vida, portanto, se desenrola em dois palcos simultâneos, o real e o ficcional. Eu sempre sou o meu momento e um punhado de personagens, tanto que, quando abro um livro meu em alguma página aleatória (isso não acontece muito, não espio meus livros,), bem sempre me lembro o que eu fiz naquele dia, no dia em que escrevi determinada página.

cmais - O que significa a história para você? Ela dá um sentido à psique de suas personagens?
Leticia - A história é um pano de fundo, mas ela pode dar sentido ao personagem sim, ela é a estrada por onde correm os dramas do personagem. Os dramas humanos são os mesmos, nós não mudamos muito - mas as condições sociais, econômicas e históricas acabam determinando quais dramas um personagem vive, e outro não. Meus romances olham os fatos históricos mais como um pano de fundo: meu avô polonês (sobre ele, escrevi Uma ponte para Terebin) foi o que foi exatamente porque nasceu na Polônia, emigrou três anos antes da invasão nazista, alistou-se e lutou como voluntário a partir do desembarque da Normandia. Estes fatos o moldaram, e marcaram toda a sua vida posterior.

cmais - Heloísa e Laura estão ligadas por um vínculo espectral, quase metempiscótico. Você acredita em fenômenos sobrenaturais ou resolveu soltar a imaginação em relação a amores passados e presentes?
Leticia - Eu acredito que lugares podem guardar energias, climas. Mas a relação entre as duas personagens, para mim, é mais um jogo entre o limite da ficção e da realidade. Não seria a vida de Laura, em suas minúcias e dramas e amores, apenas uma reconstrução que Heloísa fez, partindo de vestígios que ficaram na casa, dos livros que ela escreveu, das informações esparsas que ela colheu sobre a escritora? A própria Heloísa duvida daqueles encontros, não conta nada para ninguém. Talvez Laura - a Laura do livro - seja uma personagem de Heloísa, a história que Heloísa resolveu escrever para a dona anterior da casa.E, escrevendo esta história, perdendo-se da sua própria vida e dos seus próprios dramas, Heloísa aos poucos vai se curando do seu luto. A escrita, para mim, tem uma propriedade curativa.

cmais - Você, por outro lado, tem superstições quando escreve?
Leticia - Superstições? Eu tenho dois filhos que andam de um lado para outro, com amigos, primos, tarefas, treinos esportivos. A minha superstição é uma porta fechada entre eu e o outro lado da casa. Só escrevo isolada da confusão, sou muito dispersiva. Talvez uma brincadeira que eu repito: sempre deixo sobre a mesa um livro que tenha me tocado muito, podem ser vários livros ao longo da escritura de um romance. Deixo como um sinal, uma lembrança dos mundos que podemos erguer com as palavras.

cmais - Ao longo de sua carreira, você desenvolveu uma rotina. Você poderia contar como ela funciona?
Leticia - Minha rotina é bem orgânica - vai fluindo na vida da casa. Portanto, pratico esportes todos os dias bem cedinho. Sempre. O esporte me ajuda a pensar, e me ajuda a ficar quieta durante a tarde, que é quando eu estou ficcionando. Claro, é preciso ganhar dinheiro e, em certas temporadas, alguns trabalhos me roubam da ficção. Mas, quando estou com um romance em gestação, tento trabalhar ao menos quatro horas por dia. Sempre começo lendo o que eu escrevi no dia anterior. E sempre termino com uma pequena escaleta das próximas cenas do livro.

cmais - Você se apoia mais na intuição ou na razão quando escreve? Faz esquemas de enredo e personagens ou acredita na dinâmica da escrita, e do poder da escritura de criar situações e personagens?
Leticia -  Gosto muito de um livro do (escritor turco Orhan) Pamuk, uma série de conferências que ele ministrou na universidade de de Havard. O romancista ingênuo e o sentimental - eu sou um pouco de cada um, e claro que ambos habitam o romancista, sendo o ingênuo aquele que segue a intuição, e o sentimental, a razão. Eu faço esquemas de enredo, mas deixo que os esquemas morram sem muita piedade, quando a história me chama para lugares novos. Eu acho que escrever é orgânico: o escritor vai mudando enquanto escreve um livro, e o livro vai mudando com ele. Ou seja, faço planos para, na maioria das vezes, abandoná-los no meio do caminho. 

cmais - Você falou muito da influência de Erico Verissimo e Tabajara Ruas. Atualmente, há outros escritores pelos quais você nutre um apreço especial ou que a influenciaram de alguma forma?
Leticia -   Eu gosto de muitos escritores - Virgínia Woolf, Somerseth Maughan, John Banville, Nabokov - adoro!. Phillip Roth e Jonathan Franzem - são autores que admiro muito, mas jamais conseguiria seguir o estilo do Franzen, por exemplo, minucioso em suas cenas, desfiando cada questão de maneira muito realista. No começo, foi o García Márquez que me fez escrever, ao me mostrar que a realidade poderia ser o ponto de partida para o sonho e para o fantástico. O livro mais recente que eu li e que me derrubou foi Stoner, de um autor chamado John Willians. Bah, que livro!

cmais - Como você analisa o panorama editorial brasileiro atual?
Leticia - Nossa, eu não analiso muito - sou completamente ingênua neste sentido. Eu fico escrevendo e escrevendo. Mas acho que, apesar dos pesares, é vigoroso. 

Temos editoras fortes, com DNA nacional. Mas é um ano complicado, e só de falar nisso já fico desgostosa, e entraríamos em outra seara.

cmais - E a literatura brasileira contemporânea?
Leticia - Tem coisas muito legais, mas eu sinto falta do personagem. Acontece que não consigo ler tudo o que eu quero, não leio todos os autores que lançam livros, não tenho uma visão do todo. A literatura, para mim, é acima de tudo o prazer de ler, então, às vezes releio o mesmo livro cinco vezes em um ano, porque quero pensar mais e mais sobre ele. E deixo de ler outros quatro livros de gente que está aí, remando na mesma praia que eu. 

cmais - Você é raramente vista nos eventos literários – e sabemos que hoje em dia o escritor brasileiro vive de fazer feira e de aparecer na mídia. O que você acha desse fenômeno? É a comercialização do talento?
Leticia -  No começo, logo após o sucesso estrondoso da Casa das sete mulheres, eu era convidada para muitos eventos. Mas com filhos pequenos, viajar sempre foi uma coisa que contornei como pude. Sou tímida com outros escritores, sabia? Mas eu viajo sim, e faço muitas feiras do livro pelo país. Talvez não esteja nos grandes eventos, os famosos, que saem nos jornais e que são cheios de bossa. Mas eu falo com o público leitor, boto o pé na estrada. Agora, sobre ser uma forma de remuneração, coitado do escritor! Pra começar, o direito autoral é trimestral. Tem que ir em feiras e dar palestras. Tem que fazer textos publicitários. É preciso viver da palavra, oral ou escrita, onde a tua palavra for solicitada. Eu dou palestras, e comecei a dar pequenas oficinas, o que tem sido bem divertido pra mim, porque cria um convívio mais íntimo com alguém que é supostamente um leitor teu, e que também gosta de escrever.

cmais - Escrever é uma luta ou um prazer?
Leticia -  Escrever pode ter seus momentos de angústia, de dúvidas, mas nunca foi uma luta para mim. Está mais próximo da alegria. E, de dúvida em dúvida, sou seguindo em frente.

Para ler o primeiro capítulo de Navegue a lágrima, acesse

Navegue a lágrima (Foto: Reprodução)

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