Letra Nova

Miguel Sanches Neto: “Mesmo os brasileiros se encantaram com as pregações de Hitler”

O escritor paranaense afirma que a eugenia foi marcante no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial – e ainda resiste em muitas regiões do país


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

16/04/15 14:52 - Atualizado em 17/04/15 11:17

Miguel Sanches Neto (Foto: Divulgação)
Miguel Sanches Neto (Foto: Reprodução)

Para construir o romance A segunda pátria, o escritor paranaense Miguel Sanches Neto, de 49 anos, vasculhou arquivos, jornais e trabalhos universitários em torno da difusão do nazismo no Brasil, além de ter lido romances ambientados naquela época. 
 
Ele constatou que a atração pelo totalitarismo aconteceu também entre os brasileiros, aparentemente em um movimento contrário à índole nacional. Em seu romance, ele mostra que o brasileiro suave e aberto à miscigenação foi uma construção como qualquer outra. Na realidade, houve simpatia real e prática pela ideologia eugênica pregada por Adolf Hitler – emanando de vários partidos políticos, de integralistas a nacionalistas. Mais do que isso, ele concluiu que a mentalidade discriminatória continua a vigorar em muitos recantos do país – e não apenas no Sul, onde os movimentos nazista e integralistas se revelaram fortes e consistentes ao longo dos anos 1930 e 1940.

Nesta entrevista, esse que é um dos maiores ficcionistas brasileiros contemporâneos conta como realizou seu romance, que método usou e por que, enfim, insiste em escrever. 
 
Cmais - Como lhe veio a ideia do romance A segunda pátria? Ele me remeteu ao romance Conspiração contra a América, de Philip Roth, que também trata de uma ideia hipotética sobre os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. No caso de Roth, ele imagina o que seria os Estados Unidos sob o regime nazista. No seu, o Brasil. Foi um intertexto consciente ou só coincidência? Você se inspirou em algum autor para escrever o livro?
Miguel Sanches Neto - A ideia de A segunda pátria nasceu exatamente deste livro de Philip Roth e não foi minha, e sim da Editora Intrínseca, que me procurou para saber se eu aceitaria escrever um romance que se passasse no período da Segunda Guerra Mundial, tendo como mote: e se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler. A partir daí, comecei a buscar em minha memória e em minha imaginação possibilidades de enredo para uma narrativa. Vendo que eu tinha muito material para ficcionalizar, aceitei a proposta, e me dediquei a ela por 3 anos. Do ponto de vista intertextual, mais do que o livro de Philip Roth, serviram-me dois romances brasileiros, Um rio imita do Reno, de Vianna Moog, e O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus. Estas obras foram fundamentais para compreender, pela ficção, o período. Daí para frente, eu fui tirando de minha imaginação e da leitura de documentos da época o material de que precisava para erguer a história com o barro das palavras.
 
Cmais - Você realizou alguma pesquisa sobre a época? Em caso positivo, o que você descobriu?
Sanches Neto - Sim, li teses, livros de história, documentos, pesquisei em arquivos, em jornais da época. A maior descoberta é que havia uma crença muito forte na eugenia, que ultrapassava a comunidade alemã. Uma ideologia racista pouco comentada se instalara no Brasil nos anos 30. O meu romance amplia, intensificando, este projeto de um Brasil branco que, meio disfarçado, ainda pode ser encontrado em algumas regiões do país, não só no Sul. 
 
Cmais - Sobre sua hipótese, você acha que Getúlio Vargas poderia mesmo ter feito um acordo com os nazistas? Afinal, ele se uniu aos Aliados...
Sanches Neto - Com certeza, esta é uma hipótese plausível. Ele permaneceu indeciso, jogando com as duas potências até o final da década de 30. A adesão aos Estados Unidos é construída no começo da década de 40 (consagrada com a vinda de Roosevelt ao Brasil, em 1943) e atende a uma das forças que agiam sobre o governo, liderada por Oswaldo Aranha. Mas militares fiéis a Getúlio eram simpatizantes do nazismo, como Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra entre 1936 e 1945, Gois Monteiro, ministro da mesma pasta em 1934, Filinto Müller, chefe da política do Distrito Federal. Este alinhamento nazista sofre uma correção de rota com a tentativa de golpe dos integralistas, em 1938. Com este perigo de ver o poder usurpado por grupos que se organizavam, Vargas proíbe o funcionamento do Partido Nazista, começando o processo de nacionalização dos focos estrangeiros como um todo. Mas o Brasil continuou comercializando um bom tempo com a Alemanha e estava tentado a receber apoio para a instalação de uma indústria siderúrgica.  
 
Cmais - Como você fez para equilibrar o plano geral da história – mesmo hipotética – com o particular dos personagens? Você pensou num romance histórico à Tolstói ou sua abordagem é diferente?
Sanches Neto - O romance de história alternativa, mesmo quando se passa no passado, está mais para a Ficção Científica do que para qualquer outro gênero, no sentido de que o mundo em funcionamento é totalmente hipotético. A minha maior preocupação era criar uma história que pudesse ser lida como um futuro que não ocorreu no plano histórico, mas que continua latejando no plano da imaginação. Ele remete ao passado, mas com uma independência grande em relação a ele, de tal forma que mesmo os personagens reconhecíveis na história são pura invenção, pois seguem outro curso de ações. 
 
Cmais - Você partiu de uma situação real: a simpatia pelo nazismo nas regiões coloniais alemãs do Sul. Como você vê esse fenômeno do ponto de vista histórico? E do ponto de vista mítico?
Sanches Neto - Eu parti de relatórios policiais da época, publicados, alguns deles, em livros com teor jornalístico, e também das obras de ficção que mencionei acima. Também foram fundamentais algumas teses de doutorado na área da história que começam a deslindar este período de sintonia com o nazismo. Houve, sem dúvida, um culto hitlerista no país, que ultrapassava os limites das colônias alemãs. As ideias de Hitler estavam subjacentes em muitos de nossos discursos nacionalistas. Fazendo a prestação de contas de seus primeiros 17 meses como Presidente, Vargas afirma a necessidade “de apressar o progresso do país pelo aperfeiçoamento eugênico da raça”, tal como mostra Lira Neto em sua biografia de Getúlio.  O que ocorreu é um esquecimento estratégico deste entusiasmo. Com o fim da guerra, a Alemanha derrotada, os que foram iludidos por Hitler buscaram esquecer estes episódios. Era natural, pois foram perseguidos, sofreram constrangimentos públicos, acabaram proibidos de falar a sua língua, muitos passaram um tempo presos, etc. Há trabalhos que tratam da nacionalização traumática das colônias estrangeiras. Agora, mesmo sem se declarar, uma ideologia eugênica permanece viva ainda hoje, base do nazismo, o que mostra a força daquele ideário. 
 
Cmais - O racismo é um dos aspectos abordados, e isso acontece em torno de Ventura. Venturas existiram mesmo ou é pura construção ficcional?
Sanches Neto - O meu Ventura é uma construção ficcional, não me baseei em nenhum personagem histórico para criá-lo. Quis fazer dele uma espécie de figura arquetípica. Um negro muito bonito e inteligente que nasce entre alemães, é protegido de uma família, estuda nas escolas alemãs, domina o idioma e se forma em engenharia no Rio de Janeiro. Digamos que ele assume uma identidade social errada. Com o fortalecimento do nazismo no sul do Brasil, para onde ele volta depois de formado, é obrigado a abandonar esta identidade emprestada e construir uma irmandade com os demais negros que estavam passando pelas perseguições nazistas. Mas negros que viviam no seio de uma cultura branca existiram não só no período da Segunda Guerra – pensemos, por exemplo, no grande poeta Cruz e Sousa.
 
Cmais - Hertha é uma personagem ambivalente e contraditória. Você não concorda que ela pode lembrar algumas figuras femininas europeias que viveram a Segunda Guerra Mundial e se envolveram tanto com nazistas como com a resistência? Você se baseou em alguma personagem real ou imaginária para criar a personagem?
Sanches Neto - Sim, ela encarna esta oscilação entre duas ideologias, o que era comum neste período de extremos, mas não me baseei em nenhuma personagem específica. Quis construir uma mulher que atendia ao chamado do grupo social a que pertencia, mas que aos poucos tenta construir uma outra percepção do mundo a partir do exercício do sexo e do amor. O amor a desterritorializa.
 
Cmais - A trama de A segunda pátria poderia ter sido ambientada na Europa? Ou ela trata de especificidades brasileiras? Por quê?
Sanches Neto - Apenas no Brasil, pois aqui a questão racial passa pela discriminação principalmente dos grupos africanos e indígenas. Meu romance explora ficcionalmente o tratamento que negros e mulatos teriam no Brasil se prosperassem as Leis de Nuremberg entre nós. Na Europa, esta perseguição foi aos judeus. Aqui era muito recente ainda o fim da escravidão. Havia uma estrutura mental no país que de forma cruel via o negro de um ponto de vista senhorial.
 
Cmais - A luta por uma segunda pátria acontece tanto no plano da cultura como sobretudo no da língua. Até que ponto a língua foi importante para a tentativa de instauração do nazismo e do fascismo no Brasil durante os anos 1930?
Sanches Neto - A língua era o cimento de uma nacionalidade transatlântica. Há mapas que fazem referência a uma pátria alemã que abarcaria o sul do Brasil e países vizinhos. Nesses grupos isolados em colônias estrangeiras, o sentimento de pertencer à língua era maior do que o sentimento de pertencer à paisagem humana e física do Brasil. A língua foi um componente importantíssimo. Mas, com eu disse, mesmo os brasileiros se encantaram com as pregações de Hitler. A eugenia estava no inconsciente coletivo dos grupos eurocêntricos.
 
Cmais - Como você montou a trama e os personagens em A segunda pátria? Que diferença tem este livro em relação a seus outros romances?
Sanches Neto - A diferença crucial é que, neste livro, eu tive que entrar na cabeça de nazistas e de afrodescendentes, tentando construir personagens que pudessem ser verossímeis naquele momento histórico. Foi um exercício de alteridade narrativa mais radical do que em meus outros romances, mesmo nos romances históricos, como Um amor anarquista (sobre os anarquistas italianos que fundaram a Colônia Cecília) e A máquina de madeira (sobre o padre paraibano que inventou a primeira máquina de escrever industrializável). Nos demais romances, eu trabalho com personagens muito próximos. Em A segunda pátria, a distância a ser vencida entre mim e os personagens era muito maior.
 
Cmais - Quando escreve, você tem um método, uma disciplina, alguma superstição ou ritual?
Sanches Neto - Não há um método, mas um modus operandi. Primeiro eu sonho o livro, fico longamente inventando histórias em torno dele. Sem tomar muitas notas. Este período vai até o momento em que algo tem um impacto tão grande sobre mim que não posso deixar de começar a escrever. Durante a escrita, a maioria das histórias criadas em minha mente é descartada, e uma delas começa a crescer. A partir daí, faço de tudo para não interromper o ritmo da escrita, dedicando-me a ela todas as madrugadas, quando a cidade, a família e a internet não me solicitam. Nunca penso em tudo que tenho para escrever, apenas no que escreverei no dia seguinte. E não releio o que ficou pronto, para não perder o ritmo. Depois, volto ao copião diversas vezes, corrigindo, cortando partes, acertando o tom da narrativa. 
 
Cmais - Que autores/obras foram fundamentais para a formulação do seu estilo ficcional?
Sanches Neto - Não há um autor, mas um conjunto deles, os autores modernos que buscaram fazer uma naturalização da linguagem literária. No Brasil, de Lima Barreto a Rubem Fonseca e Luiz Vilela. Nos Estados Unidos, de Hemingway e John Fante a Raimond Carver. Na língua castelhana, de Roberto Arlt e Juan Rulfo a Roberto Bolaño. Etc. Digamos que é esta a minha família espiritual.
 

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