Letra Nova

Marcelo Backes: “Seria melhor ser escritor e matador de aluguel do que escritor e tradutor”

O escritor analisa a incompatibilidade entre o mundo infinito do escritor e o universo demarcado do tradutor


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

09/04/15 17:56 - Atualizado em 09/04/15 18:15

Letra Nova - Marcelo Backes (Foto: Reprodução)
Marcelo Backes (Foto: Reprodução)

O professor, escritor e tradutor gaúcho Marcelo Backes, 42, coordena e traduz os títulos da coleção As Grandes Obras de Arthur Schnitzler, publicada pela Record, um marco editorial no Brasil, país em que a cultura germânica não tem tido a atenção devida, com poucas traduções de obras fundamentais para a cultura ocidental.

O desafio de Backes tem sido lidar com a precariedade cultural e abordar uma obra como a de Schnitzler.  De autoria deste, Backes já editou e traduziu cinco títulos. Além de Juventude em Viena, os livros de ficção Crônica de uma vida de mulher, O médico das termas, O caminho para a liberdade e O tenente Gustl.  As próximas traduções de Schnitzler serão duas novelas: A senhora Berta Garlan e Morrer.

Backes respondeu ao questionário do Cmais sobre seu método de tradução e a diferença com a ficção. Ele acha que o trabalho de tradução é tão absorvente que neutraliza a criatividade do escritor que traduz.

A diferença essencial entre escrever e traduzir é que o escritor tem o mundo infinito de sua alma pela frente e o tradutor tem o mundo bem demarcado por outro escritor que precisa ser palmilhado em uma nova língua.

Cmais - Qual a importância da obra de Arthur Schnitzler e por que ela ficou tanto tempo sem tradução para o português?
Marcelo Backes - A literatura em língua alemã sofre no Brasil. Temos obras completas – ou assim chamadas completas – de Dostoiévski e Tolstói, mas de Goethe foram traduzidos talvez 40% da obra, de Schiller 20% (estou falando especulativamente). Grandes clássicos jamais foram traduzidos ou estão sendo traduzidos apenas agora, graças, em boa parte, a programas de incentivo específico. Schnitzler é um autor que, pelo parentesco anímico e metafísico com Freud, pelo menos sempre foi muito bem, talvez faltasse quem conhecesse sua obra e se interessasse em traduzi-la. Schnitzler é um mestre na arte de narrar, sabe construir uma novela como poucos escritores. Sem contar que mostra, tanto com sua própria conduta, conforme ela é descrita em Juventude em Viena, quanto pelo comportamento de vários de seus personagens como os personagens centrais de novelas como O tenente Gustl ou O médico das termas e mesmo de romances como O caminho para a liberdade, que compreendeu um momento importante da história da humanidade, o momento em que principiavam as grandes transformações que acabaram dando no homem tal qual o conhecemos hoje: um homem que tem dificuldades de criar vínculos porque vínculos significam responsabilidades afetivas e amorosas, um homem, enfim, que prefere a transitoriedade de um quarto de hotel à estabilidade de um lar.

Cmais - Qual a próxima obra a ser publicada depois de Juventude em Viena?
Backes -  Será uma novela chamada A senhora Berta Garlan. Depois virá outra chamada Morrer. Mais duas provas incontestáveis da grande capacidade narrativa e psicológica de Schnitzler.

Cmais - Schnitzler só publicou Juventude em Viena e não continuou a autobiografia. Por que isso aconteceu? E como teria sido a segunda parte de suas memórias, caso você a imaginasse?
Backes - Schnitzler era um contador de histórias e acho que percebeu que poderia contar suas histórias com muito mais desenvoltura na ficção do que na autobiografia. Difícil imaginar como seria uma suposta segunda parte, mas é interessante perceber que ele não é o único autor que para de contar sobre si mesmo justamente no momento em que começa a fazer sucesso como autor. O que aconteceu depois do referido sucesso, de certo modo, todo mundo também ficou sabendo, e Schnitzler talvez apenas sentisse necessidade de ver feito apenas essa espécie de inventário de sua formação.

Cmais - Em seu posfácio, você analisa as ambiguidades de Schnitzler em relação à condição judaica. Essa confusão de sentimentos era uma característica da Viena fin-de-siècle? E como entender essas aparentes contradições e incertezas? É o caso de Theodore Herzl (jornalista austríaco formulador do sionismo político)?
Backes - A relação de muitos autores de ascendência judaica com sua religião era bastante problemática. Freud, que era mais ou menos da mesma geração, em vários momentos ironizou os ritos da religião judaica, Kafka, também mais ou menos da mesma geração, chegou a escrever na Carta ao pai que a Arca da Aliança lhe lembrava as barracas de tiro ao alvo nas quais também se abria uma porta de armário quando o alvo era acertado, dizendo ainda que de dentro destas pelo menos sempre saía alguma coisa interessante, ao passo que da Arca sempre saíam as mesmas bonecas velhas sem cabeça, referindo-se aos rolos da Torá. Mas todos esses autores, e inclusive Schnitzler, reagiam de maneira feroz quando eram atacados por ser judeus, eles que se consideravam tão perfeitamente integrados à sociedade. Kafka jamais conseguiu se sentir integrado a lugar algum, caminhou a vida inteira ao longo de muro esperando encontrar a porta para um pátio que sabia não existir, mas mesmo assim reagia também e, ao final da vida, chegou a se tornar bem religioso, cogitando até se mudar para a Palestina. Quanto a Theodor Herzl, pai do sionismo, o próprio Schnitzler diz em Juventude em Viena – e isso hoje parece inacreditável – que o viu militando em organizações estudantis de índole antissemita; e Schnitzler chega a deduzir que o fato de os estudantes reacionários terem rechaçado Herzl de seu meio por este ser judeu sem dúvida foi o primeiro motivo que transformou o estudante e orador alemão-nacionalista dos pódios acadêmicos no sionista talvez mais entusiasmado do que convicto que Herzl ficou sendo para a posteridade.

Cmais - Mahler, Freud, Kraus e Schnitzler eram judeus, e se filiavam á tradição vienense. Como se dava essa miscigenação cultural, se é que havia uma?
Backes - Esse encontro cultural quase sempre parecia perfeito, mas não era livre de arranhões nem de fraturas, mesmo se tratando de judeus que estavam muito bem integrados à sociedade vienense. Assim como todos os outros que citaste, Schnitzler sofreu por ser judeu e foi atacado por seu “decadentismo” – dito tipicamente judeu –, nos debates daqueles que pensavam duas vezes em lhe conceder ou não determinado prêmio literário. Tanto que em seu romance O caminho para a liberdade, obra de 1908, Schnitzler já consegue antecipar de modo genial que o barril de pólvora da questão judaica certamente em algum momento explodiria. Não falta nem um alerta fatídico a fogueiras em determinado diálogo, quando um judeu diz que, apesar de sentir que Viena é sua pátria, jamais se batizaria, mesmo que com isso pudesse “escapar de toda a limitação e patifaria antissemita para todo o sempre”, ao que outro lhe pergunta, visionário: “mas e quando as fogueiras medievais voltarem a ser acesas...?”.

Cmais - Você estudou Heine em seu doutorado. Heine lida também com a questão judaica. Qual a diferença dos dois períodos na literatura germânica diante dessa questão?
Backes -São épocas bem diferentes, a primeira metade do século XIX e, digamos, os primeiros 30 anos do século XX ou então a virada do século XIX para o século XX, o fin-de-siècle; mas ambas mostram que o antissemitismo sempre existiu na Europa, inclusive bem antes de explodir no holocausto. É o que se pode ver no caso Dreyfus, por exemplo, que Proust é capaz de perceber genialmente em Em busca do tempo perdido que funciona como uma espécie de holocausto individual que prenuncia o holocausto geral de 40 anos mais tarde. E olha que Proust morreu em 1922. Heine sentia dificuldades em se integrar, chegou a se batizar para buscar o “bilhete de entrada para a cultura europeia”, e, não satisfeito com isso, se mudou para Paris. Heine, no entanto, também chegou a estabelecer vários paralelos muito bem fundamentados entre a condição dos judeus e a dos germânicos, vendo semelhanças entre eles, o mesmo Heine que antecipou que num lugar em que se queimava livros um dia se queimaria pessoas. Mas quando fiz de Heine o tema da minha tese de doutorado na Alemanha me interessei bem mais pelo poeta que escrevia ensaios mesmo quando fazia versos e que antecipou Baudelaire ao se deslocar da arcádia bucólica de um mundo rural para o barulho da cosmópole em suas rimas de lázaro.

Cmais - Pode-se dizer que Juventude em Viena é uma obra que remete às autobiografias atuais? O falar de si mesmo sem complacência é uma característica que está já em Santo Agostinho e Rousseau. Até que ponto as memórias de Schnitzler apontam para o futuro e se filiam ao passado?
Backes -Schnitzler é inclemente quando fala de si mesmo a tal ponto que se pensa, ao final da leitura: acho que eu não gostaria de ser amigo desse cara. O resultado final da leitura autobiográfica de Santo Agostinho e de Rousseau talvez não seja esse, porque mesmo em Rousseau talvez se perceba um certo achincalhe de si mesmo com o objetivo de se humanizar, de se tornar mais interessante. O próprio Schnitzler aliás reconhece que não é necessária nenhuma coragem de caráter especial para registrar todas as piores oscilações nem as ações mais sórdidas das quais alguém se sabe culpado quando esse mesmo alguém está convencido de que antes de sua morte ninguém tomará conhecimento do que foi dito. E até pergunta – autocrítico – se sua necessidade de verdade não viria, em parte, de uma característica radicada no sentimento patológico da ideia obsessiva, na tendência a um certo pedantismo exterior que no decorrer dos anos se desenvolveu de forma cada vez mais decidida como um corretivo ao desleixo interior. Acho que isso acerta em cheio a questão de Rousseau. E Schnitzler, por exemplo, chega a dizer que compreendia um amigo que pegou sífilis e não precisava mais tomar certos cuidados que faziam com que ele, Schnitzler, na condição de homem saudável, ainda negasse algumas aventuras que gostaria de ter, porque o amigo, afinal de contas, não tinha mais nada a perder. Caramba, e qual o papel das mulheres nessa história não ocorre a Schnitzler! Schnitzler talvez perceba, antes de Peter Gay no grandioso ensaio histórico O século de Schnitzler, que é um representante definitivo de sua época e talvez por isso tenha transformado sua vida em matéria de memória.

Cmais - Você já publicou um romance, maisquememória, que lida com essa questão da memória como invenção. Como você enxerga o tema hoje?
Backes - Quando publiquei maisquememória eu tinha 33 anos e pretendia fazer uma grande empreitada quixotesca contra o umbigo que imperava de maneira tirânica na literatura brasileira contemporânea. maisquememória era um livro de ficção, mas qualquer referência à realidade não era mera coincidência. Ele também queria mostrar que tudo que escrevemos é subjetivo, sai de dentro de nós e que mesmo quando pinto Kokoschka no quadro de maisquememória – aliás volto a pintá-lo em A casa cai – estou pintando a mim mesmo, na verdade. É impossível ser profundo sem ser subjetivo, mas a grande tragédia da arte contemporânea reside no fato de acreditar que basta ser subjetivo para ser profundo e chegar ao universo quando é fácil perceber que até mesmo a floresta negra dos românticos era mais universal do que a metrópole multifacetada dos autores contemporâneos. Quer dizer, em maisquemória eu construí o romance como uma espécie de Dom Quixote reduzido do romance contemporâneo. A posição que no clássico espanhol era ocupada pelos romances de cavalaria, no meu romance é ocupada pelos romances umbilicais da era blogueira. E meu personagem é um louco que sai para o mundo a cavalo em cima de si mesmo, mas na verdade apenas conta o mundo lá fora para esquecer a alma aqui dentro.

Cmais - A penetração psicológica das histórias de Schnitzler  se deve à formação dele e por ter estudado com Theodor Meynert, também professor de Freud? Ou essa compreensão do inconsciente era algo codificado nesse momento em Viena?
Backes -Na minha opinião ela não se deve nem apenas a Theodor Meynert, nem apenas a Viena. Poucos escritores conseguiram dissecar a alma aqui dentro, o inconsciente, se quisermos, tão bem como Proust em Em busca do tempo perdido; e ele, ainda que seja da mesma época (e isso talvez seja fundamental!), não estava vinculado a Meynert nem à capital do império Austro-Húngaro.

Cmais - Se for para indicar um romance ou conto de Schnitzler para entrar no mundo do escritor, qual você recomendaria?
Backes - Sem dúvida alguma a novela O tenente Gustl. É simplesmente a novela mais conhecida e certamente uma das mais interessantes de Schnitzler, uma obra fundamental no cânone de todo o gênero. Para fazer uma comparação próxima, tem uma importância equivalente, no âmbito da língua alemã, a O alienista de Machado no âmbito da literatura brasileira. O tenente Gustl foi, além disso, uma das primeiras obras fundamentadas do princípio ao fim no monólogo interior ou fluxo de consciência, que permite um acesso direto à alma conturbada e mesquinha do personagem central. O processo literário que alimenta a imaginação do tenente Gustl é o mesmo que, mais de vinte anos depois, alimentaria o Ulisses de Joyce, num texto obviamente mais fácil, mais narrativo – quase histriônico às vezes, apesar da seriedade do tenente consigo mesmo –, mas nem por isso menos profundo.

Cmais - Seu trabalho como tradutor envolve a compreensão do estilo de cada autor e, por conseguinte, uma adaptação quando se trata de trasladar esse estilo para o português. Que estratégia você adotou para Schnitzler e como você descreveria o estilo dele? Você buscou fidelidade com a maneira de ele escrever?
Backes - Eu tento fazer o mínimo possível de adaptações, ser o mais fiel que consigo, mas sei que às vezes é preciso trair para amar de verdade. Pouco depois de começar a traduzir, organizei e traduzi uma coletânea do conto alemão do século XX que foi chamada de “Escombros e caprichos”. Para ela, ajudei a selecionar e traduzi 54 contos de 54 autores diferentes. E, quem a ler, verá que Kafka na tradução de Marcelo Backes não tem nada a ver com Thomas Mann na tradução de Marcelo Backes. O estilo de Schnitzler é intensamente narrativo, pouco descritivo, relativamente simples e fundado na análise da alma humana, que sempre se revela através daquilo que o personagem faz e diz, sem que Schnitzler precise interferir com juízos de valor. Schnitzler se posiciona diante da alma humana como se fosse uma montanha e, usando formão e martelo, começa seu trabalho, não para destruir essa alma, mas para analisá-la melhor em seus fragmentos, mais ou menos como faz um arqueólogo, e ao dizer isso eu logo já me lembro do Monte Palatino com suas várias camadas civilizatórias, comparado por Freud à alma humana, ao inconsciente, e seu processo de formação.

Cmais - Como você traduz? Conte como é o seu método.
Backes - Só traduzo escritores pelos quais eu me interesso, que em geral eu mesmo ofereço às editoras, embora já tenha acontecido de editoras me oferecerem autores pelos quais me interesso muito. Traduzo o livro inteiro numa espécie de processo de imersão, em que tento respeitar profundamente o original, inclusive no uso individual das palavras; sempre fui a favor de levar o leitor à obra traduzida e não de trazê-la, mastigada, lisa, de arestas aparadas a boca infantilizada do leitor. E em seguida, depois de uma pausa, começo o trabalho de transformar aquela matéria em um texto agradável de ser lido em português.

Cmais - Até que ponto traduzir se aproxima do exercício da ficção?
Backes - São, ambos, processos criativos. Tanto que eu às vezes penso que seria melhor ser escritor e matador de aluguel do que escritor e tradutor. Por isso, aliás, traduzo cada vez menos e me concentro cada vez mais em meus grupos de estudo e minhas aulas. A tradução acaba engolindo a criatividade que eu posso usar para escrever meus próprios livros. De modo que aproveito a insatisfação com o mundo em que vivo para criar meu próprio mundo e não para elaborar em minha língua o mundo também interessante de outro escritor. Se eu me tornei tradutor foi por circunstâncias de ordem objetiva e por um certo iluminismo ingênuo que, em determinado momento, se deu conta de que havia obras maravilhosas que ainda não haviam chegado ao leitor brasileiro e quis suprir essas lacunas. Depois, acabei percebendo que a tradução poderia ser uma ótima oficina literária, e continuei traduzindo por causa disso. Eu comecei a escrever ficção bem cedo, quando comecei a escrever. Registrava minhas impressões sobre o mundo e sobre as pessoas em notas de caderno que já tinham o arcabouço que só muitos anos mais tarde vim a saber que era aforístico, que aparece de modo direto num livro como Estilhaços e continua aparecendo indiretamente mesmo num romance como A casa cai, conforme me parece.

Cmais - Como ficcionista, o que você busca? Alguma obsessão ou Leitmotiv?
Backes - Se há algum Leitmotiv nos meus livros é o do sujeito que não consegue se entender nem se haver com o mundo à sua volta, essa impossibilidade de achar bom o lugar em que está, a eterna frustração existente entre expectativa e realização, entre fantasia pujante e realidade mesquinha. O mundo nega a existência do tédio apontando a lua, eu nego a existência da lua apontando o tédio. Em A casa cai, por exemplo, um homem que fugiu da vida a vida inteira de repente perde o pai, com quem nunca conseguiu se entender direito, e recebe dele uma herança vultosa, mas pantanosa, com a qual é obrigado a lidar e que inclusive conta a paradigmática história imobiliária do Rio de Janeiro e do Leblon. Ao mesmo tempo, esse homem, amante das artes plásticas e logo em seguida da lavagem de dinheiro como o pai (o pai é dono de construtora e eu chego a antecipar na história alguns dos escândalos artísticos da operação Lava Jato), constrói, numa época em que ninguém mais cozinha pra ninguém, uma casa para sua mulher, a mulher que também herdou de seu pai. E o faz, por humildade mas sempre sentindo as dificuldades de se enquadrar, justamente no pior lugar do pântano paterno, a Selva de Pedra, construída sobre os escombros daquilo que um dia foi a Praia do Pinto, uma das favelas horizontais da opulenta Zona Sul do Rio de Janeiro, aniquilada como todas as outras para dar espaço à especulação imobiliária. Enquanto reforma seu ninho em meio aos dejetos do passado e do presente, esse homem, sempre tropeçando no mundo à sua volta, desvenda seu passado, o passado terrível de seu pai, e o passado da cidade e do país, e é obrigado a perceber que a verdadeira construção nada tem a ver com concreto armado, mas sim se dá por dentro, e que mesmo a arquitetura de um bairro só passa a existir de fato quando tocada pelo afeto humano.

Cmais - Você está trabalhando em uma obra de ficção atualmente?
Backes - Estou, sempre estou. Estou no período de anotações para um romance picaresco em que aproveito viagens distantes em trens de luxo que tenho feito e que vão de Pequim a Moscou ou de Istambul a Teerã. Mas esse processo sempre demora, no meu caso. Como acabo de publicar A casa cai,o próximo livro demorará alguns anos a vir a público, porque mesmo esse processo de anotações no meu caso demora às vezes anos. 

Cmais - O método de traduzir é o mesmo que você utiliza para fazer ficção? Quais as semelhanças e diferenças?
Backes - A diferença essencial entre escrever e traduzir é que o escritor tem o mundo infinito de sua alma pela frente e o tradutor tem o mundo bem demarcado por outro escritor que precisa ser palmilhado em uma nova língua. Desde criança, enquanto as vacas pastavam eu lia Homero, e agora me ocupo cada vez mais em atrelar o Pégasus mítico e veloz do universo ultramoderno ao arado do meu próprio mundo de origem interiorana, me movendo constantemente sobre o fio paradoxal dessa navalha e sentindo que as maiores conquistas da civilização não impedem um certo mal-estar que na barbárie da infância ainda não existia. Por outro lado se poderia dizer, e Proust já disse algo semelhante, que o escritor é um tradutor de si mesmo. O escritor faz um mergulho em sua própria alma humana onde vai buscar os livros que, no caso de muitos escritores atuais, conforme acho, deveriam ficar por lá mesmo.

Cmais - Que grandes autores contemporâneos de língua alemã ainda faltam ser traduzidos?
Backes - Faltam até mesmo alguns clássicos, inclusive obras essenciais de Goethe. Theodor Fontane era inédito até há pouco, Jean Paul e Gottfried Keller continuam inéditos. Sem contar uma obra como o Anton Reiser de Karl Philip Moritz, por exemplo. Entre os clássicos da modernidade, eu citaria por exemplo Wolfgang Koeppen, e entre os autores novos, talvez Terezia Mora merecesse destaque, inclusive para marcar a importância da literatura feita por imigrantes na Alemanha.

Cmais - O que você diria a um jovem que pretenda se dedicar à literatura? Repetiria os conselhos de Rilke?
Backes - Por incrível que pareça nunca li esse livro do Rilke, que já traduzi como poeta e que admiro muito a ponto de ele ser uma referência básica, com poemas como “A pantera”, em meu romance O último minuto e mesmo em A casa cai. Talvez eu não tenha lido as Cartas a um jovem poeta porque não acredito na indicação de um caminho. O grande encontro é um encontro consigo mesmo, precisa ser feito na solidão, e só eventualmente aproveita o que aprendeu lá fora, por exemplo na leitura de clássicos. E isso apenas porque imitar também é aprender, porque conhecer os outros é um modo de descobrir um pouco a si mesmo. E olhos que souberam ver às vezes são os únicos que nos fazem enxergar de verdade.

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