Viagem ao centro do cérebro

Em conferência no ciclo Fronteiras do Pensamento, apoiado pela TV Cultura, o cientista brasileiro Miguel Nicolelis fala sobre como o desenvolvimento da neurociência pode auxiliar a mente a se libertar dos limites do corpo.


Luíza Giovancarli Educação

29/06/11 10:37 - Atualizado em 30/06/11 10:56

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Um cientista no palco da Sala São Paulo? E ainda por cima em véspera de feriado, com a televisão transmitindo direto a partida que deu ao Santos a Taça Libertadores da América? Isto não é desafio nenhum quando se tem o nome de Miguel Nicolelis. Com muito bom humor e didático na justa medida, esse paulistano da Bela Vista deixou entusiasmado o público que foi assistir sua conferência na Sala São Paulo, dia 22 de junho.  Ganhou mais admiradores, gente que agora entende porque ele tem grandes chances de ser o primeiro brasileiro a ganhar um Prêmio Nobel. No caso, de Medicina.

Não que ele não tenha deixado de ser provocativo. Causou certo incômodo para muitos na plateia, por exemplo, a afirmação de que a  era do culto ao corpo está com seus dias contados. Começamos a entrar no ciclo da mente, que supera de maneira exponencial os limites do físico de carne e osso, disse ele na abertura da conferência, parte do ciclo “Fronteiras do Pensamento”, que tem o apoio da TV Cultura.

Mas o que prevaleceu, muito apropriadamente para o local, foi música. “O cérebro é como se fosse uma orquestra gigantesca. Ele tem uma atividade elétrica de cem células disparando ao mesmo tempo. E a gente extrai deste ruído algo que pode ser transformado em ação”, explica o doutor em Fisiologia Geral pela Universidade de São Paulo, pós-doutourado na Universidade de Hahnemann (Filadélfia), líder do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, professor titular de Nueorobiologia e Engenharia Biomédica da Universidade de Duke (Carolina do Norte), além de diretor do Centro de Neurologia.

Foi com a promessa de realizar uma sinfonia um pouco diferente da que estamos acostumados a escutar que Miguel Nicolelis iniciou sua viagem ao centro do cérebro. “O neurocientista moderno nada mais é do que um astrônomo. Ele tenta medir tempestades neurais desse órgão que chamamos de cérebro”, complementa o cientista.

 

Assista ao Roda Viva com Miguel Nicolelis

 

Bloco 1

Bloco 2

Bloco 3

 

Tempestades cerebrais

Não é fácil entender este órgão responsável pelas ações da natureza humana. No entanto, o senso comum lida diariamente com termos como brainstorm (tempestade do cérebro, em tradução literal), expressão utilizada quando duas ou mais pessoas se reúnem para discutir ideias. Nicolelis tenta mostrar o que realmente significa essa tempestade para a neurociência:

“Nós sabemos que o sinal vermelho é para parar e o verde para avançar. Isso, no entanto, não é herdado geneticamente, é aprendido por circuitos neurais que produzem uma tempestade cerebral. O padrão elétrico que invade nosso cérebro continuamente gera tudo o que produzimos ao longo de uma vida”, explica. E essa tempestade tem som. Algo como o barulho da pipoca estourando na panela ou uma rádio AM mal sintonizada.

 

Escute o som da tempestade cerebral:

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Como e quando foi possível conhecer toda esta atividade cerebral? Segundo Nicolelis, há 70 anos. Contrariando os neurocientistas da época, o psicólogo canadense Donald O. Hebb’s descobriu que, ao invés de dedicar a atenção a um neurônio de cada vez, deveríamos prestar atenção nas populações de neurônios. Isto porque nossas ações básicas, como andar, mexer os braços e pernas dependem da atividade de populações de neurônios. Daí o erro de estudar cada um de uma vez. “É a mesma coisa que um ecologista querer estudar o ecossistema da Amazônia estudando apenas uma árvore”, compara Nicolelis.

Apesar de revolucionária, a visão de Hebb’s foi completamente ignorada na época. Hoje, no entanto, graças ao desenvolvimento da tecnologia foi possível a criação de sensores que registram a atividade elétrica dos neurônios. “Até o final da década de 80, registrava-se um neurônio de cada vez. Agora, existe uma perspectiva de que nos próximos dez anos conseguiremos registrar de 50 a 100 mil neurônios simultaneamente”, declara o cientista.

 

Voltando a andar com a ajuda da mente

A técnica de registro múltiplo dos neurônios, desenvolvida nos últimos 20 anos, permite não apenas registrar um número grande de células como também manter os registros vivos durante anos. E este fato interessa a Miguel Nicolelis profundamente. “A partir disso, temos a esperança de criar artefatos que utilizem a transmissão neural para corrigir defeitos neurológicos do sistema”.

O cientista explica que o cérebro de uma pessoa que perdeu os movimentos dos membros inferiores, por exemplo, está sempre em atividade, tentando descobrir como andar novamente. O que a neurociência quer é extrair os comandos motores do cérebro para mover um corpo no futuro. “Pela primeira vez foi criado um paradigma, apelidado de interface cérebro-máquina, onde estudamos como o cérebro codifica a informação que pode ser traduzida em comportamentos”, explica.

Desta forma, surge uma nova forma de comunicação direta da máquina com o cérebro, sem a intermediação do corpo. O cérebro então pode decodificar o que a máquina está realizando sob seu comando. É o princípio básico para a criação de membros robóticos ou até mesmo de um exoesqueleto robotizado que permita que paraplégicos e tetraplégicos voltem a andar.

 

A independência da mente e a tradução do pensamento

“Até este momento a nossa espécie se vangloriou de criar um culto ao corpo. Mas isso começa a terminar neste momento porque a mente vai conseguir atuar fora dos limites impostos pelo nosso corpo de primata e os limites serão irrelevantes”, afirma Nicolelis.

Por meio de pesquisas realizadas em laboratórios, o pesquisador percebeu que uma alternativa para tratar pacientes com epilepsia, por exemplo, era estimular um nervo que desestabilizasse a atividade caótica dos neurônios. Seguindo este princípio, estudos realizados com animais mostraram que as crises epilépticas reduziram em até 80%. Quando os testes foram realizados em pacientes na Califórnia, o resultado foi semelhante. Para Nicolelis, estas técnicas estarão presentes nas clínicas de neurologia daqui a alguns anos.

Estes resultados positivos levaram o pesquisador à ideia de que as interfaces cérebro-máquina pudessem ser uma das terapias utilizadas para restaurar lesões severas do sistema nervoso.

“Se os pacientes ainda imaginam os movimentos necessários para andar, nós poderíamos, através da robótica, ler esse pensamento e transformá-lo em movimentos através de um novo corpo. Este corpo seria robótico e os pacientes passariam a utilizá-lo. Posteriormente, este seria assimilado pelo cérebro”, explica o pesquisador. Desta forma, as atividades geradas passam a ser o resultado da tradução do pensamento. O cérebro começa a ser imaginado como um simulador da realidade. Realidade que, contando com os esforços da neurociência, está prestes a ser modificada.

 

Confira o Provocações com Miguel Nicolelis.

 

(Fotos: Greg Salibian)

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