“Instalamos microfones no confessionário”

Em entrevista à equipe do programa Fronteiras do Pensamento, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman examina aspectos polêmicos da vida pós-moderna


Marcelo Alencar Educação

23/08/11 09:22 - Atualizado em 23/08/11 09:22

O público presente à Sala São Paulo na noite de 9 de agosto foi duplamente agraciado. Antes de assistir à conferência do filósofo francês Edgar Morin, pelo programa Fronteiras do Pensamento, a plateia apreciou a projeção de um vídeo exclusivo em que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman expôs suas ideias sobre aspectos controversos do mundo atual -– entre os quais, a volatilidade das relações humanas e a necessidade de um novo conceito de democracia.

Impossibilitado de vir à capital paulista em 12 de julho, data em que proferiria uma palestra ao vivo, o autor dos livros Modernidade Líquida, Capitalismo Parasitário e Vidas Desperdiçadas recebeu representantes do evento brasileiro treze dias depois, na cidade inglesa de Leeds, onde vive e leciona, para conceder uma entrevista. As análises agudas e objetivas desse professor universitário, inveterado fumante de cachimbo e detentor do prêmio Príncipe das Astúrias de comunicação e humanidades de 2010, alternaram momentos de descontração e preocupação entre os espectadores. Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa em que o autor de 86 anos esbanja lucidez.

A condição social no mundo pós-moderno
“O que aconteceu no século XX foi uma passagem de toda uma era da história mundial -– da sociedade de produção para a sociedade de consumo. Por outro lado, houve processos de fragmentação da vida humana. Hoje nós temos grandes dificuldades para adivinhar o que vai acontecer conosco no próximo ano. A vida está dividida em episódios. A sociedade foi individualizada.”

A identidade
“Você tem de criar sua própria identidade. Você não a herda. E não apenas precisa fazer isso a partir do zero, como também passa a vida toda redefinindo sua identidade porque os estilos de vida mudam muitas vezes. Se eu tentasse listar as coisas que saíram de moda ao longo da minha vida, provavelmente gastaria várias horas aqui. E receio não poder dizer qual dessas mudanças é a mais duradoura e vai influenciar as próximas gerações.”

A pós-modernidade
“Quando você está num processo de transição, fica difícil imaginar outro tipo de solução estável, um acordo de convivência humana. Mas isso vem, mais cedo ou mais tarde. Com algum grau de responsabilidade, posso dizer que aconteceram duas coisas irreversíveis.

Uma delas é que nós multiplicamos as conexões, as relações, as interdependências, as comunicações espalhadas por todo o globo. Estamos agora numa posição em que todos dependemos uns dos outros. Pela primeira vez na história, o mundo inteiro é, em certo sentido, um único país.

A segunda questão é que, após aproximadamente 300 anos de história moderna, nossos antepassados decidiram assumir a natureza sob a gestão humana na esperança de fazer com que ela obedecesse às nossas necessidades. Assim eles teriam pleno controle do que aconteceria no mundo. Mas isso acabou porque, na esteira de nossos próprios sucessos -- o desenvolvimento da tecnologia moderna, nossa capacidade de produzir cada vez mais e alcançar todos os tipos de recursos naturais --, chegamos muito perto do que agora entendemos serem os limites de suportabilidade do planeta.”

O futuro da democracia
“Só posso dizer quais são, hoje, os perigos para a democracia. Um deles se refere às dimensões do divórcio entre poder e política. O Estado, a única instituição política de que dispomos -– já que não há uma instituição global -–, não tem poder suficiente para manter as promessas feitas por ele aos cidadãos 50 anos atrás. Nos 30 anos do pós-guerra ocorreu uma proliferação e um florescimento democráticos. Agora, a democracia encontra-se decadente. Cada vez menos gente está de fato convencida de que ela seja uma coisa boa. E por quê? Simplesmente porque os Estados relativamente sem poder conseguem oferecer cada vez menos aos cidadãos. A maioria dos Estados está terceirizando muitas funções que eles deveriam desempenhar.

Quem sabe, já que estou fazendo profecia, nós inventaremos uma democracia global em algum momento? Seria uma solução radical, porque a estrutura do Estado-nação não permite que ele possa seguir defendendo sozinho o futuro da democracia. Então, teremos de criar um equivalente global às invenções de nossos antepassados, que idealizaram a democracia em âmbito nacional.

A democracia é uma noção que, com o tempo, adquire diferentes formas, instrumentos e estratégias. Se inventarmos equivalentes globais para a democracia atual, não será por meio da ampliação das instituições democráticas que conhecemos hoje, pois elas foram criadas e adaptadas às necessidades do Estado-nação.”

Autonomia individual
“[O filósofo francês Cornelius] Castoriadis diz que o indivíduo autônomo e a comunidade autônoma, politike, só podem existir juntos. Um precisa do outro. Você não pode ser um indivíduo numa sociedade tirana, totalitária. Deve haver cooperação entre as duas autonomias. Quando eu era jovem, temia que todo o perigo viesse da esfera pública. [O escritor inglês] George Orwell, de forma memorável, colocou isso da seguinte forma: ‘Nós temos medo da bota de um soldado prensando um rosto humano’. Isso era um perigo, sem dúvida, mas nossos antepassados e parte da minha geração conseguiram superá-lo, afastá-lo. Nós não tememos mais que a individualidade seja oprimida por choques que venham de cima – por meio da polícia secreta, por exemplo. Entretanto, o risco para essa autonomia veio de outro lado: da esfera privada, individual.

A maior aproximação contemporânea da ágora -- do lugar onde a democracia foi feita, refeita, continuada, desenvolvida e protegida -– são os talk shows da televisão. É a eles que as massas assistem. E participam deles, telefonando, enviando perguntas, mensagens etc. Ao observarmos esse fenômeno, vemos que as pessoas não estão discutindo nossos interesses comuns nem o bem-estar da sociedade. Elas estão confessando, em última análise, problemas particulares e bastante íntimos.

Ehrenberg, o sociólogo francês, afirmou que a revolução pós-moderna começou numa quarta-feira à noite, num outono da década de 1980, quando uma certa Vivienne, uma mulher comum, na presença de 6 milhões de telespectadores, declarou que nunca teve um orgasmo durante seu casamento porque seu marido, Michel, sofre de ejaculação precoce.

Por que esse foi o início da revolução? Porque repentinamente, na ágora, as pessoas começaram a confessar coisas que eram a personificação da privacidade, da intimidade. Coisas que você só contaria ao padre, no confessionário ou aos amigos realmente chegados. A ágora foi conquistada, não pelos regimes totalitários, mas exatamente pela privacidade. No confessionário, você conversa diretamente com Deus. Trata-se de um segredo absoluto. Mas nós instalamos microfones no confessionário.”

A condição individual no mundo pós-moderno
“Um viciado em Facebook gabou-se para mim de que havia feito 500 amigos num único dia. Respondi que tenho 86 anos, mas não consegui fazer 500 amigos. Então, provavelmente, quando ele e eu dizemos ‘amigo’, não queremos dizer a mesma coisa.

Quando eu era jovem, não existia o conceito de ‘redes’. Havia o conceito de laços humanos, de comunidades. E qual é a diferença entre comunidade e rede? A comunidade precede você. Você nasce em uma comunidade. A rede, diferentemente, é feita e mantida viva por duas atividades diferentes. Uma é conectar e a outra, desconectar. E eu acho que a atração exercida pelo novo tipo de amizade, a amizade do Facebook, está exatamente aí. É fácil alguém se conectar, fazer amigos. Mas o grande atrativo é a facilidade de se desconectar.

Imagine que você não tenha amigos online, conexões online, compartilhamentos online, mas conexões off-line. Conexões de verdade, cara a cara, olho no olho. Romper essas relações é sempre um evento muito traumático. Você precisa achar desculpas, se explicar, mentir com frequência e, mesmo assim, você não se sente seguro. Isso porque seu parceiro diz que você não tem o direito, que você é um porco etc. Mas, na internet, é tudo muito fácil. Você só pressiona delete e pronto. Em vez de 500 amigos, você terá 499. Mas tal condição será apenas temporária, pois amanhã você já terá 500 amigos outra vez. Isso mina os laços humanos.

Os laços humanos são uma mistura de bênção e maldição. Bênção porque é realmente muito prazeroso ter um parceiro em quem confiar. Por outro lado, há a maldição, pois quando você entra no laço, espera ficar lá para sempre. Você faz um juramento: até que a morte os separe. Isso significa que você empenha seu futuro. Talvez amanhã ou no ano que vem surjam novas oportunidades. Mas hoje você não consegue prevê-las e não será capaz de aproveitá-las no futuro porque estará preso aos velhos compromissos, às antigas obrigações. Portanto, é uma situação bastante ambivalente, um fenômeno curioso que envolve pessoas solitárias numa multidão de solitários.”

A ambivalência da vida
“Há dois valores essenciais, que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro, liberdade. Você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um caos total, incapacidade de fazer ou planejar algo, ou mesmo de sonhar com isso.

O problema, porém, é que ninguém encontrou a fórmula de ouro, a mistura perfeita de segurança e liberdade. Cada vez que você tem mais segurança, entrega um pouco da sua liberdade. E cada vez que tem mais liberdade, você abre mão de parte de sua segurança.
Minhas conclusões são duas. Em primeiro lugar, ninguém jamais encontrará a solução perfeita para o dilema entre liberdade e segurança; sempre haverá muito de uma e pouco de outra. E a segunda conclusão: nós nunca iremos parar de procurar essa mina de ouro.”

Felicidade
“Não acredito que exista apenas uma maneira de ser feliz. Há muitas delas. Existem dois fatores relativamente independentes que dão forma à vida humana. Um dele é o destino, apelido de todas as coisas sobre as quais não temos nenhuma influência. É o que acontece conosco, mas que não foi causado por nós. E o outro é o caráter, algo muito individual. Você pode mudá-lo, melhorá-lo e ter boa parte dele sob controle.

A divisão do trabalho entre o destino e o caráter é a seguinte: o destino estabelece uma gama de opções realistas para você; e as escolhas entre essas opções são sempre feitas pelo caráter. E, já que os tipos de caráter são muitos e variam bastante, não é possível dar uma receita para a felicidade.”


Marcelo Alencar, jornalista, é editor da Diretoria de Projetos Educacionais da Fundação Padre Anchieta

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