Ocupação criativa no centro de SP

A Cia. Pessoal do Faroeste faz de sua existência um ato político e dá nova perspectiva à região da Cracolândia


Rafael Cruz Arte & Cultura

27/05/13 19:48 - Atualizado em 27/05/13 21:11

Paulo Faria | Foto: Bob Sousa

Na esquina da Rua do Triunfo com a General Osório, onde o samba e o cinema se encontram, a Cia. Pessoal do Faroeste inicia uma ocupação cultural inovadora. 
 
Será no “Amarelinho”, imóvel nº 23 da General Osório, que abrigou nos últimos anos o atelier da artista plástica Maria Bonomi - neta de Giuseppe Martinelli, construtor do Edifício Martinelli -, onde cinco companhias teatrais mais cinco produtoras de cinema terão espaço garantido para realizar suas atividades.
 
A ideia é resgatar a aura da região, conhecida como Boca do Lixo, que nas décadas de 1920 e 1930 sediou os escritórios da Paramount, Fox e Metro, além de distribuidoras e fábricas de equipamentos cinematográficos e voltou a evidência entre os anos 1960 e 1980 com o cinema marginal e as pornochanchadas. Verdadeiro reduto do cinema nacional, origem da fama de nomes como Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Júlio Bressane e Zé do Caixão.
 
Seu Raimundo, como é conhecido o proprietário do imóvel natural de Euclides da Cunha, na Bahia, e que veio para São Paulo como auxiliar de cozinha, possibilitou o uso dos três andares do edifício para a ocupação coletiva, que será coordenada por Paulo Faria.
 
Paulo é autor, ator, produtor, cenógrafo e diretor teatral. Natural do Pará, tem 47 anos, 34 deles vividos nos palcos. Cursou Letras na Universidade de São Paulo. Foi vencedor do Prêmio Coca Cola de Teatro Jovem (1999), Prêmio Nacional de Dramaturgia Plínio Marcos (2000), Prêmio de Melhor Texto e Melhor Espetáculo no Festival de Cubatão (2009), Prêmio Artes Visuais da Cooperativa Paulista de Teatro (2010) e indicado aos Prêmios Shell e Governador do Estado (2012).
 
Paulo Faria está à frente da Cia. Pessoal do Faroeste desde sua fundação, em 1998. Em janeiro de 2013 a companhia deixou seu antigo endereço, a Alameda Cleveland nos Campos Elíseos, endereço ocupado pelo grupo desde 2006, e se instalou na atual Sede Luz do Faroeste na Rua do Triunfo, bairro da Luz, região central da capital paulista.
 
O coletivo cultural que será abrigado no Amarelinho é continuação da dinâmica de transformação que se iniciou com a chegada da companhia teatral num endereço que é um verdadeiro faroeste - esquecido e temido - no coração da metrópole.

 sorteio
Representantes dos grupos ocupantes no sorteio das salas realizado em 23/05.
 
Tendo como estopim a determinação do então prefeito Jânio Quadros, em 1953, que retirou das ruas do Bom Retiro a atividade de meretrício, o trecho compreendido entre as Avenidas Duque de Caxias, Rio Branco, Ipiranga, as Ruas Cásper Líbero e Mauá e a Praça Júlio Prestes se transformou em ponto de intenso consumo de entorpecentes e prostituição. Trazer o público para assistir peças teatrais em plena Cracolândia, evidenciando a carência da região, é um ato político.
 
Prestes a abrir um precedente otimista para o centro da capital, Paulo Faria conta ao cmais+ suas expectativas e objetivos com seu projeto de ocupação urbana pela cultura.
 
cmais+: Paulo, a cultura foi o fator regenerante de muitas localidades ao redor do mundo. Cidades como Barcelona, Bilbao e Medellín se utilizaram da circulação cultural para erradicar problemas de violência. Neste sentido, como a Cia. Pessoal do Faroeste vem utilizando sua presença na região da Cracolândia?
 
Paulo Faria: Colocando a história da rua de onde criamos no centro da nossa dramaturgia, sempre estruturada num gênero. De forma simples, para que todos entendam. No caso da nossa peça em cartaz, “Homem Não Entra”, o faroeste. E assim criar no público um sentimento de pertencimento, para que, ao sair da peça, se alimente e reconheça onde está. Acho o Largo General Osório uma das mais belas encruzilhadas arquitetônicas da cidade, e com um passado cultural tão belo quanto. Onde o samba se junta ao cinema. Faz ideia do quanto é muito? E estar alinhado a todos os movimentos populares da região – prostituição, pobreza, moradia, poder falar dos excluídos que muitos tentam calar; é dessa forma que sentimos a nossa presença aqui.
 
cmais+: A iniciativa de cessão do imóvel por um particular e a mobilização das organizações culturais que ocuparão o espaço demonstram a força da iniciativa própria que não conta com fomento. Uma vez instalados, que tipo de olhar e ação por parte do governo espera o coletivo cultural do Amarelinho?
 
Paulo Faria: Esperamos políticas culturais claras e objetivas que facilitem esse tipo de ação, de ocupação na cidade, como a exemplo da Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, que patrocina toda esta ação e que precisa ser ampliada. É impossível estarmos aqui na região sem um investimento público direto sem intermediários, sem isenção fiscal. A Lei de Fomento ao Teatro é um instrumento eficaz para a inclusão e valorização do indivíduo, pela sua expressão e protagonismo. O governo precisa incentivar a produção já existente na cidade, ampliando e facilitando a sua circulação e fruição. O governo não deve encarar as políticas públicas culturais como um evento. Cultura não é só evento. É também. Mas cultura quem faz é o povo.
 
cmais+: Ao todo, quantas pessoas estão envolvidas com a ocupação? Numa ocupação livre, caracterizada pela autogestão, como será feita a remuneração de todos os profissionais envolvidos? A receita gerada pelas atividades das produtoras e companhias, por si só, será suficiente?
 
Paulo Faria: Ainda não sei ao certo quantas pessoas cada coletivo reúne. A Cia. As Graças, por exemplo, até tem um ônibus! Ali será um QG de cada coletivo e o encontro possibilitará construir o que e como será essa rede. Em princípio, nos unimos numa guerrilha urbana, num projeto político de ocupação. Tudo será construindo coletivamente. Cada coletivo pagará um valor possível e cada um tem sua produção independente. A ideia não é fazer um condomínio, mas possibilitar o encontro entre o teatro, o cinema e a música, para que a tradição da rua continue, para que o bastão seja passado. Receita? Qual? Agora vamos enrolar as mangas e ir atrás de um patrocinador. Não devemos gerar lucro, geraremos ideias, expressões; não estamos falando de mercado, falamos de contracultura. De um movimento.
 
cmais+: Há intenção de um próximo passo? Outra ocupação similar nas imediações ou algum efeito multiplicador à ocupação do Amarelinho?
 
Paulo Faria: Tomara que mais “malucos” se inspirem e que o governo facilite essa maravilha. Por aqui há muito espaço público ocioso e que deveria sediar residências artísticas. Há também outra importante questão, que é a moradia no centro que não deve ser esquecida, principalmente, resolver o déficit de moradia para famílias de baixa renda, que já moram aqui em ocupações, cortiços, regularizar isso de forma simples. Somado aos artistas com seus ateliês, seus teatros, suas produtoras, acredito que essa alquimia possa ajudar a humanizar a região. Vamos garantir espaços para moradias e expressões culturais. Assim a cidade respira melhor. Vamos nos movimentar com os movimentos. A nova gestão da cidade parece que está aguçando sua escuta, parece que existe diálogo em São Paulo novamente. Estamos saudosos disso. Aqui estamos bem otimistas e ávidos que esse diálogo inicie logo.
 

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