“Quando o filme termina, ele não é mais meu, pertence ao espectador”, diz diretor de Sr. Kaplan

Alvaro Brechner fala com o cmais+ sobre a produção que estreia nesta quinta (26/2) nos cinemas brasileiros


Ana Carolina Surita, do cmais+ Cinema

25/02/15 14:39 - Atualizado em 25/02/15 15:19

kaplan
Nas últimas décadas, o cinema uruguaio vive um momento de ascensão. Obras como O Banheiro do Papa, premiado em  Gramado e na Mostra de Cinema de São Paulo; Whisky, eleito o melhor filme latino-americano dos últimos 20 anos no Festival de Valdivia, no Chile, mostram que o Uruguai saiu do papel de espectador da 7ª arte. “Por quase cem anos no Uruguai só se viam filmes. Quando eu estudei narração audiovisual, os professores riam quando você dizia que queria fazer cinema. Os próprios professores que deviam te ensinar, diziam: ‘esqueça de fazer ficção, não é possível aqui’”, conta o premiado diretor uruguaio Alvaro Brechner.

Não dando ouvido aos educadores, conseguiu dirigir filmes que foram aclamados pela crítica. É o caso de Mau Dia Para Pescar (2009), selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes e para mais de 60 festivais internacionais. No Uruguai, o filme permaneceu em cartaz durante 23 semanas consecutivas, recebendo quatro prêmios da Associação Uruguaia de Críticos, nas categorias de Melhor Primeiro Longa-metragem, Melhor Filme Uruguaio do Ano, Melhor Roteiro e Melhor Diretor. Na Espanha, recebeu indicação da crítica especializada para os prêmios de Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Roteiro.

O mesmo caminho de Mau Dia Para Pescar talvez seja trilhado por seu novo filme, Sr. Kaplan. Na trama, Jacobo Kaplan é um senhor que se irrita com a ociosidade da velhice e quer fazer algo para ser lembrado para eternidade. Quando o espectador assiste ao filme, ele se identifica com o personagem do senhor teimoso. É uma figura bem familiar, sendo muito fácil conhecer alguém com o jeito do Sr. Kaplan, tanto no círculo de amigos, quanto na própria família.

Sr. Kaplan foi escolhido pelo Instituto do Cinema e Audiovisual do Uruguai (ICAU) para representar o país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2015. Confira o que o diretor fala dos bastidores desse filme, de inspirações e do cinema uruguaio em entrevista exclusiva para o cmais+.

cmais+: Sr. Kaplan é um personagem muito familiar e quando assistimos parece que já o conhecemos. Como é dirigir um personagem como Sr. Kaplan? Como foi o trabalho junto aos atores do filme?

Alvaro Brechner: A beleza de trabalhar no cinema, como em qualquer meio artístico, é que cada um que está envolvido, e, finalmente, o espectador, acaba se familiarizando com a história e os personagens. Então, cada um faz o seu. Claro que eu conheço Jacobo Kaplan, porque, na minha imaginação, foi inspirado pelas memórias de histórias do meu avô, em histórias que conheci e escutei, dele e também de outros avós. Da mesma forma, os atores dão aos seus próprios pontos de vista sobre as suas experiências, e o espectador pode ver também o de filme sentindo que, durante duas horas, o personagem é o seu próprio avô, seu pai ou eles mesmos.

Em termos de trabalho de ator, tive a sorte de contar com a presença, experiência e humanidade de Héctor Noguera. Foi um enorme privilégio. Eu me sinto muito orgulhoso de seu trabalho, é uma honra que tenha escolhido participar do filme. Hector é um mágico, que sempre tira a humanidade de uma caixa preta que tem todo o seu repertório interpretativo. Ele se mostra uma pessoa plena, capaz de entender essas pequenas nuances e contradições que a vida tem. Hector vinha ao set muitas vezes com as suas ideias, e eu dizia: "você tem uma proposta, eu tenho outra, e vamos trabalhar para que saia naturalmente uma terceira opção, vamos descobrir juntos”. Com os atores, é muito importante escutar, prestar a máxima atenção. Eles são o material mais sensível do filme, a história é contada através de suas emoções. Devemos estar atentos a eles.

Há um tema recorrente na comédia, é que a empatia mata o humor. A capacidade de envolvermos um sentido dramático faz com que não possamos ver com distanciamento humorístico  desgraças que acontecem com o nosso protagonista (Lembre-se que o humor tem base no sofrimento). Rir de Chaplin comendo suas botas em The Gold Rush seria algo impossível, se por um segundo, em vez de Chaplin, estivesse na mesma situação um dos personagens dos irmãos Dardenne.

cmais+: Quando e como surgiu a ideia de dirigir Mr. Kaplan?

Alvaro Brechner: Fui convidado para o festival de Varsóvia com o meu primeiro filme Mal Día Para Pescar, e aproveitei a oportunidade para visitar a cidade (Sosnowiec). Há 100 anos, muitos imigrantes vieram para a América do Sul deixando tudo para nunca mais voltar. Era muito raro os imigrantes visitarem sua cidade natal. No caminho de casa eu não tirei a ideia da cabeça. O fato é que um dia vamos morrer, e depois de algum tempo, não importa o que fizemos, ficará muito pouco de nós neste mundo. O que sabemos é que um dia nascemos, tiramos algumas fotos e morremos. Ao voltar, comecei a lembrar de uma série de histórias sobre o meu avô, e eu conheci uma amiga a quem contei minha situação. Ela me contou sobre o romance: "O Salmo de Kaplan", de Marco Schwartz, que tinha um avô que decidiu se tornar um caça nazista. Eu imediatamente fiz contato e começou o processo que resultou no Mr.Kaplan.

cmais+: Este é o segundo longa que você dirige e já foi indicado para representar o Uruguai no Oscar de 2015. Seu outro trabalho Mau Dia para Pescar também recebeu prêmios e ficou muitas semanas em cartaz. Como se sente em dirigir filmes tão aclamados pela crítica?

Alvaro Brechner: Me sinto antes de tudo um sortudo, acho que tive muita sorte. É muito difícil saber as razões que me levaram a fazer um filme, sacrificando anos de trabalho muito duro e esforço para contar uma história. No fundo, eu faço isso para satisfazer uma necessidade pessoal, é um jogo maravilhoso que me permite durante um tempo  refletir sobre quem eu sou e o que quero dizer sobre o meu lugar neste mundo. Mas quando o filme termina, já não me pertence, pertence ao espectador. E é aí que você precisa de sorte, porque você não pode fazer mais nada. É um grande orgulho. Mas, no fundo, você não se esquece que isso é uma ambição pessoal para tentar aprender algo de sua própria condição humana.

cmais+:  A fotografia do filme também chama a atenção. Teve alguma dificuldade na gravação? Fale um pouco das filmagens, da pós-produção e da escolha da trilha sonora.

Alvaro Brechner: Eu tenho muita sorte, porque ao longo dos meus anos, tenho trabalhado com uma equipe maravilhosa. Com alguns, já são mais de dez anos trabalhando juntos, por isso nos entendemos fácilmente, fica fácil saber o que cada um quer. Com o diretor de fotografia (Alvaro Gutierrez) trabalhei em meus curtas e em meu primeiro filme (Mal Día Para Pescar).Em Mr.Kaplan queríamos fazer uma fotografia que contrastasse com os momentos internos do protagonista. Inicialmente uma fotografia envelhecida prematuramente, que mostrasse o tédio e o aborrecimento do personagem. Depois, ter um contraste maior de cores e intensidade quando ele fosse chamado a viver esta grande aventura de se tornar um tipo de espião caça nazista. O filme foi inteiramente rodado no Uruguai, e o processo de pós-produção terminou na Espanha e na Alemanha. A trilha sonora foi composta por Mikel Salas, com quem havia trabalhado em Mal Día Para Pescar. Desejo que possamos continuar trabalhando junto com esta equipe.

cmais+:  O que o público pode esperar de Mr. Kaplan?

Alvaro Brechner:  Acho que é bastante difícil prever como o público vai receber o Sr.Kaplan. Eu acho que um filme é bom  quando é recebido de forma diferente por públicos distintos. Pude ver o filme em diversos festivais de cinema em diferentes projeções, e é incrível as diferentes reações que causa. Eu acho que isso é, em parte porque, para alguns o filme se apresenta como uma comédia, e, para outros, como um drama. Isso faz com que para mim seja sempre uma surpresa muito grande.

cmais+:  Você pode falar um pouco sobre o cinema uruguaio?  Acredita que a cada ano que passa ele surpreende cada vez mais?

Alvaro Brechner:  Por quase cem anos no Uruguai só se viam filmes. Todo mundo era um crítico de cinema que opinava. Quando eu estudei narração audiovisual, os professores riam quando você dizia que queria fazer cinema. Os próprios professores que deviam te ensinar, diziam: "esqueça de fazer ficção, não é possível aqui." Então, hoje eu digo que é uma espécie de sonho poder contar com um cinema uruguaio, é quase um milagre. Mas essa origem faz com que haja uma necessidade vital e urgente que se transmite nos projetos.

cmais+:  Você tem outros projetos para o cinema?

Alvaro Brechner:  Sim, eu estou escrevendo meu próximo projeto.

cmais+:  Quais são as suas principais referências?

Alvaro Brechner:  Meus gostos são variados e ecléticos. Posso te dizer que o cinema que mais tem me interessado e continua a me surpreender é o cinema italiano dos anos 60 , e o cinema norte-americano dos anos 40 e 70. Eu sempre tento distanciar meus gostos pessoais de referências específicas que possam servir em determinado filme ou situação. Eu tento evitar esta estupidez moderna do culto ao diretor. O que eu me importo mais é com os filmes e a minha reação com eles, do que quem os fez.

cmais+: O que o cinema uruguaio tem em comum com o argentino?

Alvaro Brechner:  Uruguai, além do Río de la Plata, tem muitas coisas em comum com a Argentina, especialmente na cultura. Somos irmãos distantes. Temos muitas coisas em comum, e que, obviamente, também se reflete na música, na literatura, e, claro, no cinema.

cmais+: O cinema argentino de alguma forma inspirou o uruguaio?

Alvaro Brechner: Talvez há 15 anos, quando sonhávamos em fazer filmes, e sentíamos que era quase impossível, olhamos com surpresa o novo filme que  começava  a sair do outro lado do Rio de la Plata. Percebemos que era possível. Mas hoje eu não diria que o cinema argentino é uma influência particular, não mais do que outras. E eu penso que de forma recíproca foram feitos filmes uruguaios que também influenciaram o cinema argentino ou a outros cinemas como, por exemplo, o filme uruguaio Whisky.

cmais+: Você explora aspectos tragicômicos. Você evita tragédias como diretor?

Alvaro Brechner: De modo nenhum. Eu tento não eludir o fato de que eu vejo a vida como um misto de comédia e tragédia. Eu gosto mundo de comédias que têm um fundo dramático. Acho que o humor é um assunto muito sério. Muitas vezes, o poder de rir de nós mesmos nos ajuda a lidar com uma situação dramática ou trágica. Rir não só serve de consolo, mas nos faz perder o medo. Como exemplo dessa mistura de drama e comédia, eu vou te dar um exemplo: no início do Sr. Kaplan, há uma cena que é uma história literal sobre o meu avô. Em uma festa, meu avô com 75 anos se lançou em uma piscina sem saber nadar, só para convencer seus amigos a respeito de uma estúpida discussão sobre o fato de que para poder nadar não era preciso saber nadar. Numa situação limite, é o instinto de sobrevivência que faz alguém nadar. É claro que o meu avô foi parar no fundo da piscina, e foi resgatado pela minha avó. Ele passou dois dias no hospital com água nos pulmões. Foi uma enorme preocupação para todos, quase se tornou uma tragédia enorme e ridícula para a família. Mas, depois de alguns anos, e com  meu avô  já falecido, sempre lembramos dessa história e rimos.  Somente através do drama e da comédia seria possível falar de um personagem corajoso e teimoso como meu avô. 

Título original: Mr. Kaplan
Distribuição: Pandora
Data de estreia: qui, 26/02/15
País: Uruguai/ Espanha/ Alemanha
Gênero: comédia
Ano de produção: 2014
Duração: 98 minutos
Classificação: 12 anos

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