Diretora do Tutu-Marambá relata como eram feitos os tributos às vítimas de Hiroshima e Nagasaki

Segundo Cleide Riva Campelo, objetivo do ciclo feito entre 2008 e 2014 era sinalizar que a paz é possível


Dra. Cleide Riva Campelo, diretora do grupo Tutu-Marambá: Pesquisas das Artes do Corpo Arte & Cultura

06/08/15 15:14 - Atualizado em 07/08/15 16:12

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Durante sete anos, tributo a Hiroshima foi realizado na praça Kasato Maru, em Sorocaba, interior do estado (Foto: Tiago Macambira)

Quando em 6 de agosto de 2008, nosso recém-criado grupo de artistas/performers Tutu-Marambá, Pesquisas das Artes do Corpo apresentava o primeiro dos sete tributos que faríamos a cada ano, desde então, não imaginávamos como o Japão entraria para a vida da gente. Começamos tímidos, pensando que, nas múltiplas fibras com que tecíamos nossos cestos simbólicos, não poderíamos deixar passar uma data tão forte e tão recente em nossa história. Tomamos posse, então, do parque Kasato Maru de Sorocaba – naquela época ainda muito ausente da vida da cidade – e fizemos nosso “Tororó-Acã: Tributo das Terras de Sorocaba à Memória de Hiroshima e Nagasaki”. De bambu, construímos uma réplica da cúpula de Hiroshima que sobreviveu à explosão atômica e a carregamos em nossa procissão, ano após ano. Surgiu uma deusa durante a pesquisa corporal, que, a princípio, não compreendíamos; mas alguns anos depois, descobrimos ser Kannon, a deusa da paz, a deusa de Hiroshima: e a saudamos. Recobrimos pedras com panos de seda. Fizemos lótus de papel, que viraram barcos luminosos e corriam o rio, com velas de fogo. Fizemos chuva de flores sobre a cúpula de bambu. Fizemos peixes de papel pendurados sob a ponte e pingentes de pérola e tsuru marcando o caminho. Sopramos pios de pássaros para acalmar a memória dos mortos e a lembrança dos vivos. Vertemos água de cântaros sobre a fonte para saciar a memória dos que morreram com sede. Tocamos sinos. Andamos em silêncio reverente. E, com nossos corpos de artistas, dançamos as mais delicadas histórias que soubemos dançar.

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Deusa Kannon,  a deusa da paz, a deusa de Hiroshima. (Foto: Tiago Macambira).

Não era da bomba que queríamos falar, pois de violência já bastava o líquido fétido que escorria e continua a escorrer todos os dias dos folhetins, no relato de nossas vergonhas cotidianas. Queríamos lembrar que, como artistas e pensadores contemporâneos, precisávamos sinalizar que a paz é uma das nossas possibilidades. É o nosso sonho.

E foi por uma paz que pudesse cair como uma chuva de flores sobre todos os homens, que a cada ano reverenciamos a memória daquele ato terrível, e ainda assim, humano – exatamente como era humano o nosso gesto pela paz. O homem é capaz de coisas surpreendentes, em todos os sentidos.

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"Vertemos água de cântaros sobre a fonte para saciar a memória dos que morreram com sede". (Foto: Tiago Macambira). 

Assim, dentre todo o nosso trabalho na linguagem da Performance (ao todo, já apresentamos 25 trabalhos, de 30 de Julho de 2008 até o presente), sete foram nosso tributo pela paz, em memória das vítimas de Hiroshima e Nagasaki:

2008: Tororó-Acã

2009: Para Que Nunca Se Esqueçam

2010: Rosas Cálidas

2011: Uma Segunda Chance

2012: Ecos Tenebrosos

2013: Por Quem os Sinos Dobram?

2014: Contos do Bambu. E do Kháos, Robusto, A Efêmera Harmonia É Recriada.

Fechamos nosso ciclo, mas continuamos contaminados pela delicada memória com que a cultura do Japão nos favoreceu. Somos hoje, na busca de nossa identidade brasileira, ao revirar nossas lembranças indígenas, africanas e europeias, capazes de gestos mais delicados, exatamente por termos mergulhado na cultura japonesa. Somos gratos a ela.

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 Barcos luminosos corriam o rio, com velas de fogo, em homenagem as vítimas. A cada performance era lançado ao rio o número de barcos equivalentes aos anos da queda da bomba. (Foto: Tiago Macambira).

E continuaremos a saudar a paz para todos, que só poderá vir de Hiroshima e Nagasaki: flor-fênix, que nascerá com a força de tudo aquilo que já conheceu a destruição. Ela virá das profundezas, da escuridão, do medo: mas, virá com a coragem de saber que aquilo que passou não poderá nunca mais se reproduzir. Uma paz construída e que cairá só como chuva boa, para garantir o futuro de nossas crianças. 

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