Mirisola paz e amor

O Cabral da autoficção brasileira diz que está mais “palatável”, mas sem perder a língua ferina


Luís Antônio Giron, do cmais+ | foto PodCultura Arte & Cultura

19/09/14 10:50 - Atualizado em 19/09/14 10:53

Marcelo MirisolaSe o valor de um escritor é medido pelo número de desafetos e inimigos que ele coleciona, então o paulistano Marcelo Mirisola, de 48 anos, é o mestre brasileiro da atualidade. Não que ele não seja de fato um dos grandes escritores atuais, e por razões puramente estilísticas, conforme veremos adiante. Mas, no campo extraliterário – o das rodinhas de autores, críticos e editores –, Mirisola se tornou o autor maior de uma façanha às avessas: falou mal de tanta gente e entrou em confronto com outros tantos intelectuais e celebridades da moda que hoje os críticos conspiram silenciosamente contra ele e – pelo menos é o que  Mirisola diz, em entrevista para o cmais.

“Não existo mais para o meio literário porque não faço jogo de bastidores nem marketing”, afirma. “Na verdade, faço o antimarketing. O resultado é que meu nome hoje é impronunciável nos círculos que determinam o que é bom e ruim na literatura. E basta fazer uma pesquisa rápida para ver que são sempre os mesmos. Um ano ganham um concurso e no outro ano já são os jurados que dão prêmios para retribuir o prêmio do ano anterior. Este é o meio literário do Brasil.”

De fato, a repercussão de seu novo livro foi nula. Nem uma única resenha saiu do romance Hosana na sarjeta (Editora 34, 144 páginas, R$ 32,00) desde que foi lançado, em meados de julho. “Prefiro uma crítica destrutiva a um tapinha no ombro”, diz. Mas nem isso aconteceu com seu livro novo. É para desconfiar de um boicote orquestrado, pois se trata do 15º livro de uma carreira consolidada, iniciada em 1998. E é certamente um dos mais interessantes de Mirisola, tanto pela mudança de tom como pelo modo complexo com que elabora a narrativa e os personagens.

Hosana na sarjeta pode ser considerado um romance filosófico que assinala a rendição do narrador misógino Marcelo aos encantos de duas mulheres opostas: a inatingível Ariela e a prostituta Paula Denise. “Mulher da vida ou mulher da minha vida?”, pergunta-se Marcelo – ipso-ego de Mirisola, como em todos os livros dele. “Um amigo meu, Nilo Oliveira, diz que eu sou o Pedro Álvares Cabral da autoficção”, afirma. Desde o primeiro livro, a coletânea de contos Fátima fez os pés para mostrar na choperia, de 1998, seu “eu lírico” se confunde com ele próprio. Explica o que é a sua autoficção: “Tudo o que é verdade é mentira e tudo o que é mentira é verdade. É a memória que engana, a cronologia inventada, a lembrança de uma coisa imaginada antigamente. Todo mundo faz autoficção. O problema é que tem muito chato fazendo autoficção. Ninguém aguenta ler.”

Marcelo, o herói de Hosana na sarjeta, nada tem de chato. Ele resmunga e experimenta sua saga interior enquanto erra por várias locações que podem lembrar uma aventura de James Bond tupiniquim: um lupanar azul em Kuala Lumpur e na Praça Roosevelt, um verão em Mongaguá e uma cobertura no Leme. A odisseia culmina – ou escorrega – em um pesque pague do interior.

As frases de efeito e as obsessões habituais atravessam o texto de Mirisola. Mas ele parece mais contido nos ataques a personalidades conhecidas. A língua ferina quase se dobrou. Parece ter amadurecido, ainda que tardiamente. Mirisola paz e amor? “Estou mais palatável”, retruca. “Mas sem perder a acidez.” Como informa em seu livro, uma mulher mudou sua vida. Depois de dois anos no Rio de Janeiro, casou-se há um com Bianca, estudante de Letras nascida na Mooca (“com sotaque da Mooca”, diz) e vive uma fase pacata em um apartamento no bairro da Glória. Sofreu recentemente um problema cardíaco. “Sobrevivi a mim mesmo”, diz.

Ouça a entrevista na íntegra no player abaixo:

Dos 25 aos 35 anos, Mirisola diz ter vivido o seu ápice criativo. Devorou Nelson Rodrigues, Machado de Assis e Junichiro Tanizaki. Na passagem do século XXI, ele era o jovem autor mais celebrado da geração 90. Os críticos se prostravam a seus pés. Então, em 2002, tudo desandou segundo ele. Foi quando publicou o romance O azul do filho morto, escrito nos anos em que morou em Florianópolis. No livro, ele critica e ataca aspectos da população catarinense que a população catarinense não gostou de ler. “O colunista social da cidade começou a fazer campanha contra mim, pedindo que eu fosse expulso da cidade. Fui corrido de Florianópolis.” Até mesmo um resenhista paulistano do livro seguinte, Bangalô (2003) - o seu romance favorito, ainda mais agressivo que o anterior - foi ameaçado de ser banido de Florianópolis.

Com o passar do tempo e com o tom cada vez mais agressivo de seus textos, perdeu aliados na crítica – que, de admiradores, passaram a agir como detratores. “Eu fui linguarudo, eu sei. Mas ser totalmente ignorado... não é para tanto, né?”

Foram-se os tempos de enfant terrible. “Nâo tenho mais paciência para descobrir autores. Gosto de reler. Estou na fase Tolstói, que releio com prazer, lentamente”.  Mesmo adepto da lentidão, afirma estar adaptado aos novos tempos. Tem uma relação “ótima” com a internet e escreve crônicas para o site do Yahoo e aprendeu a pensar no leitor. ‘Sou obrigado e ater um leitor que não é ideal”, afirma. “E assim escrevo pelo mesmo motivo que um motorista vai à garagem e dirige o ônibus até o ponto final. Eu não tenho esse negócio de ser perseguido pelos personagens, isso é bobagem. Escrevo como um trabalhador.”. Mantém uma disciplina de escrita. Acorda cedo pela manhã para escrever durante três horas sem parar. Depois, para se desvencilhar de si próprio e para se inspirar, caminha pelas ruas. “Eu preciso do lado de fora para escrever”, diz. “A internet sugou o lado de fora. Hoje todo mundo fica do lado de dentro, em casa, preso à tela do computador. Antigamente repreendia-se quem passava o tempo todo na frente da televisão. Hoje todo mundo aprova quem fica preso ao computador. Se o Marcel Proust tivesse televisão e computador, como poderia ter escrito suas memórias? Ele não poderia mergulhar nele mesmo.”

Imerso em cismas sobre amores perdidos, solidão e amizade, ele escreveu Hosana na sarjeta em apenas 45 dias, do carnaval à Páscoa de 2012. “Passei um ano burilando o texto.” Ele diz gostar da dupla feminina do livro, embora não queira elogiá-las mais que as “mais de 100 outras mulheres” que povoam seus livros. “As outras podem não gostar e vir tirar satisfação!”

Ele talvez ainda venha a escrever um romance que não lhe diga diretamente respeito e fique de pé na estante pela grossura. Mas não pensa nesses termos. “Talvez eu pudesse escrever um livro em 90 dias que tivesse o dobro de páginas de Hosana na sarjeta. Mas o tamanho de um livro não lhe fornece qualidade.” Apesar de ignorado, o novo romance é uma pequena joia. A consagração ao contrário só engrandece a obra de Marcelo Mirisola. Mais do que ter sobrevivido a si próprio, desta vez ele se superou.

 Leia o primeiro capítulo de Hosana na Sarjeta aqui

Hosana na Sarjeta

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