A abordagem artística do Brasil Colonial a partir de seus registros e documentos

Pedro Corrêa do Lago, curador da Coleção Brasiliana Itaú, fala sobre a (re)construção narrativa da história brasileira através de documentos, retratos e obras oficiais e secretas


Arte & Cultura

26/02/15 12:19 - Atualizado em 26/02/15 12:58

15c. panorama rio de janeiro_dickson_nicolle_le capelain_1835_foto horst merkel

O Espaço Olavo Setubal foi inaugurado em 13 de dezembro no Itaú Cultural (Av. Paulista, 149) e mostra, de maneira permanente, módulos, peças iconográficas, imagens avulsas ou inseridas em álbuns, livros, documentos e mapas que retratam e revelam o Brasil e sua cultura. Obras-primas da literatura brasileira também marcam presença, com exemplares de primeiras edições, muitas delas com dedicatória e ilustrações de nomes fundamentais da arte brasileira. A partir de uma coleção pessoal rica, os dois andares do prédio na Avenida Paulista, coração de São Paulo, dedicados às obras que constituem a história do Brasil Colonial representam um marco para a museologia nacional. Num cenário em que grande parte das recentes exposições em cartaz em São Paulo, com suas filas quilométricas, são dedicadas à arte moderna e contemporânea (vide as recentes Yayoy Kusama, Ron Mueck e Salvador Dalí), a Coleção Brasiliana Itaú tenta ser mais que um contraponto, é um resgate histórico e artístico do Brasil, em seu período de formação colonial. Sua importância vai ainda além, na medida em que o projeto não contou com apoio de leis de incentivo. Abordando aspectos da curadoria e das decisões políticas, culturais e históricas, que levaram à formação da coleção e sua recente exposição, o Podcast Rio Bravo entrevistou o curador da Coleção, Pedro Corrêa do Lago.

 

Como é que foi o trabalho concepção desse acervo? Qual foi o critério que guiou a seleção das obras que agora estão em exposição?

Para falar da seleção das obras, eu acho que é importante falar também da gênese da coleção. Não é à toa que o espaço se chama Espaço Olavo Setubal. O que ele tem de excepcional é o fato de ele ser também permanente. Quer dizer, em vez de ser uma exposição, como muitas que a gente tem que correr para ver antes que acabe, essa vai ficar vários anos aqui e vai permitir um referência constante a um conjunto de obras muito coeso, que abrange de uma maneira bastante completa a produção, sobretudo sobre papel, artística suscitada por temas brasileiros. No começo, foi um desejo do Dr. Olavo. Como eu te disse, não é à toa que o espaço se chama Espaço Olavo Setubal. É uma homenagem ao idealizador e ao criador dessa coleção. Mas o Dr. Olavo, na verdade, tinha uma paixão pelo Brasil e ele me pediu, pediu para um outro grande amigo dele que também é colecionador, Rui Sousa e Silva, para nós estarmos atentos para oportunidades de aquisição, pelo banco, de peças importantes que poderiam enriquecer o acervo. No começo, não acho que houvesse uma intenção tão clara de se fazer uma coleção tão abrangente, tão ampla, mas, à medida que iam surgindo oportunidades a respeito das quais nós éramos bem informados, por sermos colecionadores, tanto do Brasil como do exterior, como gente querendo se desfazer de coisas, leilões, o Dr. Olavo foi adquirindo peças, em um período relativamente curto. Quer dizer, eu diria que 90% do que é mostrado na exposição foi comprado em um período de menos de 8 anos, o Dr. Olavo foi tomando um imenso gosto por aquelas peças e foi comprando com entusiasmo cada vez maior, foi se interessando cada vez mais em enriquecer a coleção. Chegou uma hora que eu tive que dizer para ele: "Dr. Olavo, sem nós termos tido essa intenção inicial, a coleção acabou ficando extraordinariamente abrangente. Ela é, em termos da produção sobre papel, dos principais artistas estimulados pelo tema Brasil, ela é extraordinariamente representativa. Tem poucas lacunas." Aí, no estilo tipicamente dele, muito executivo, ele disse: "Tem lacunas, Pedro? Vamos preencher." Então, eu tive esse privilégio excepcional, para um curador de uma coleção ainda em formação, de poder completá-la sistematicamente. A maior parte das coleções significativas nessa área, que a gente chama, de uma maneira abrangente, Brasiliana, foram obras do acaso. Foram instituições que foram recebendo ao longo das décadas doações de sócios ou de pessoas cultas que morriam e deixavam os acervos. Às vezes, havia também algumas campanhas de aquisição por parte de governos um pouco mais esclarecidos, mas sempre se comprava o que estava disponível naquele momento.

Não havia uma procura?

Não havia uma procura sistemática, nem continuada. Se tinha diretores de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que completou 175 anos, agora já com 176, que era o mais ativo na procura de peças para enriquecer o acervo. Os outros eram mais passivos. Morria um sócio que era especialista em Guerra do Paraguai e se ele deixasse uma biblioteca importante ou peça da Guerra do Paraguai, a instituição era enriquecida em Guerra do Paraguai. Mas também se não tivesse, ia ficar aquela lacuna, entendeu? A gente ter o privilégio de poder fazer uma coleção sistemática durante três anos, que foram os últimos anos da vida dele, foi realmente uma oportunidade rara, porque nós sabíamos quais colecionadores tinham as peças e nós fomos atrás e muitas vezes conseguimos adquirir.

Como se deu o seu início nesse projeto? Quando iniciou sua participação como curador e essa relação com as lacunas que o Olavo Setubal dizia que faltavam e precisavam ser preenchidas?

Eu te responderia que, para muitas das áreas cobertas pela Brasiliana Itaú, a um certo roteiro que se pode seguir. Há um número finito de livros com ilustrações que foram publicados sobre o Brasil nos séculos anteriores ao passado. Você sabe quais são os principais e você vai atrás deles. Você tem alguns artistas muito importantes que você quer que estejam representados na coleção, claro que você tem finita possibilidade de enriquecê-la, mas você tem, mais ou menos, se você milita um pouco nessa área, você tem uma ideia do que seria uma representação correta. E você tem, basicamente, o suporte principal que perpassa toda a exposição que procura justamente as manifestações artísticas de tema brasileiro, mas que nos primeiros séculos foram quase todas de artistas estrangeiros, que é o papel. Há uma avassaladora maioria de obras em papel, mas como foi incorporada também na Brasiliana, você tem moedas excepcionais, que a rigor são também obras de arte, porque são também obras de criação, muitas vezes. A única coisa que não é uma obra de criação e que está muito presente na exposição são os documentos históricos que servem como uma espécie de pontuação histórica para colocar várias etapas.

Conta para gente um pouco sobre esses documentos históricos. Qual foi sua preocupação em colocá-los juntos com essa trajetória pictórica a respeito da história do Brasil?

Alguns dos documentos apresentados são documentos da criação, como esboços de Niemeyer, a letra de Para Todos do Chico Buarque, de Garota de Ipanema, por exemplo. Eu considero que aquele desenho meio mecânico do último que Santos Dumont fez antes do suicídio, também é, de certa forma, um documento de criação. Certamente, o manuscrito musical do Villa Lobos é um documento que registra uma criação. Então, talvez com a desculpa de que os finais são da criação, você justifica um pouco a presença de outros que pontuam momentos históricos. A exposição começa, por exemplo, com um documento do Don Manuel Venturoso. Na falta de qualquer documento de Cabral, do qual não se conhece assinatura e não se conhece a letra, porque não sobrou nada escrito pelo Cabral, você tem um pergaminho. O próprio pergaminho já é um objeto curioso, porque, como suporte para o documento não é um papel, mas sim uma pele de carneiro que foi preparada para ser suporte para escrita. Então, à medida que vai avançando, o documento histórico original, o manuscrito de um grande escritor, onde um personagem da história, como Tiradentes, aproxima aquele personagem do público. Você está vendo um papel que ele tocou, que ele escreveu ele mesmo. Não é um livro sobre ele com muitos exemplares. Eu acho que casa muito bem com o caráter único e excepcional de muitas das peças. Dirá você, me conhecendo, quer também reflete uma idiossincrasia do curador. Eu estou tradicionalmente ligado ao documento, é uma paixão minha pessoal de colecionador. Sempre valorizei muito o documento físico, muito além do conteúdo, também como objeto de grande charme ao ser exposto, a meu ver.

Outros museus no Brasil possuem acervos que também contam a história do país com essa perspectiva pictórica. Houve alguma preocupação, no caso dessa mostra permanente, de evitar alguma repetição, por exemplo, com um caminho semelhante?

Eu acho que nós optamos por uma trajetória, ainda que cronológica, menos preocupada com o aspecto histórico. É a história com a sua incidência sobre a arte produzida a partir de tema brasileiro. Você tem uma exposição permanente também, ou pelo menos que se pretende ficar durante muito tempo, no museu histórico nacional, mas a abordagem é completamente diferente. Você expõem espadas e uma série de objetos que nós, de certa forma, evitamos na exposição, porque ali os objetos estão lá pelo significado histórico, entendeu? Para nós, os objetos estão aqui pela importância artística na imensa maioria das vezes.

Ainda que sejam documentos em alguns dos casos...

É, o documento é exceção. Para mim, aquilo é arte, mas estou brincando (risos). Claro que nem todos são, alguns são apenas... Mas com exceção dos documentos que, bem ou mal, fizeram parte dessa visão de Brasiliana lacto senso que o Dr. Olavo tinha, que tinha que estar refletido de certa forma na exposição e que tem um papel importante. Quando você termina, por exemplo, a escravidão, onde a iconografia e as imagens suscitadas pela escravidão junto aos artistas viajantes estão lá, e muito bem representadas, você tem uma documentação terrível a respeito do aspecto econômico, comercial e a atividade econômica fundamental que a escravidão representava. Por mais que haja essa lenda de que o Rui Barbosa mandou queimar a documentação relativa à escravidão, sobraram muitos documentos e você tem coisas de arrepiar. Você tem cartas de alforria, felizmente, mas tem também certidão de nascimento, de óbito, passaporte de escravo, taxa de escravo e tem os documentos, que você comprava como um DARF em uma papelaria, que eram documentos de compra e venda de escravos que você tinha que preencher. Já vinham pré-impressos. Dizia assim: "Vendo o escravo - Aí você preenchia o nome - com todos seus vícios, achaques, novos e velhos, tal como possuía." Você não precisava copiar de novo essa fórmula, porque já vinha impressa. Você vendia o escravo no Estado, é basicamente isso. Esses documentos que lidavam com vidas humanas com a maior naturalidade e indiferença absoluta, trazem, evidentemente, uma outra fruição para essa obras de arte que são suscitadas pela escravidão. Eu, claro que é uma visão muito pessoal, mas eu considero que há um enriquecimento da arte pela contextualização com o documento.

Em relação aos índios, no começo da exposição existe um espaço com bastante destaque para eles. De que maneira essa exposição conta essa narrativa dos índios que muitas vezes não está tão clara, seja pela historiografia oficial, seja pelas narrativas e relatos que hoje a gente tem à disposição?

O objetivo da exposição não é equilibrar a maneira de contar a história, corrigir injustiças, trazer uma nova luz para coisas que foram desprezadas pela historiografia oficial ou que não foram tratadas corretamente. O nosso objetivo, como eu te disse, é adaptar a narrativa histórica à realidade que nos foi apresentada pela arte. Por que eu insisto tanto no Brasil secreto e desconhecido? O primeiro século não tem nenhuma arte produzida no Brasil. Toda ela é reflexo, é arte por estrangeiros fora do Brasil. Aí você tem o milagre do Brasil holandês, que o Maurício de Nassau tem a ideia totalmente pioneira para a época de, em uma expedição militar, levar artistas e cientistas, porque sabe que vai passar um longo tempo. É como se tivesse ido para a lua. Ele está levando máquinas para pegar pedras da lua para fazer análise depois. Então, ali você tem pela primeira vez artistas formados na Europa, cuja obra é observada em loco, no Brasil. A arte é produzida a partir do que eles observaram. Ai você tem, justamente por ter havido essa invasão, um período traumático de 150 anos em que a criação no Brasil não é mais pictórica, porque você não tem mais artistas estrangeiros, mas você tem o talento brasileiro criativo, que se expressa na poesia, naqueles árcades, que por acaso também participam de Inconfidência, ou não por acaso participam. Você tem a arte feita clandestinamente a partir dos temas brasileiros e a arte oficial, que é autorizada, que seria a imaginária do Aleijadinho, que é religiosa e então tem um razão para existir, ou então é obra dos engenheiros militares portugueses ou espanhóis a serviço de Portugal, que são autorizados a retratar aquilo que é secreto. Na verdade, eu te confesso que não ouve uma preocupação nem com o modo da escravidão nem com a presença dos índios no modo dos naturalistas em tentar reequilibrar qualquer relato. O que houve foi uma preocupação... Aliás, a maneira como os índios foram apresentados, e a gente ressalta isso, elas fazem parte da fauna brasileira. Eles são apresentados ao mesmo título de curiosidade que os animais, praticamente. Essas coisas são instigantes e obviamente você não está endossando elas, mas você não pode ignorar. Claro que os naturalistas mais esclarecidos não viam isso dessa forma, mas uma boa parte de público via. A curiosidade era a mesma que por espécimes exóticos. O fato do primeiro modo se preocupar muito com o canibalismo, que era a realidade da época, para o brasileiro de hoje, essa realidade é totalmente distante. Ninguém mais fala de canibalismo, a não ser na antropofagia que foi recuperada pelo Oswald de Andrade, mas de uma forma metafórica e para um movimento artístico e literário. Mas o canibalismo não está mais na ordem do dia, mas a escravidão está. A escravidão foi uma realidade que influenciou a nossa realidade atual do Brasil. A escravidão foi, evidentemente, um fenômeno que tem uma repercussão e tem uma ressonância nos dias de hoje gigantesca. É quase inimaginável você imaginar trazer uma população à força tão grande e isolar completamente, obrigar... Enfim, é tão inacreditável, apesar de ser uma coisa que todo mundo conhece e sabe que aconteceu, é muito difícil de imaginar no contexto atual de liberdade, de formação, o isolamento que ficaram aquelas pessoas e tudo. De novo, eu não estou querendo recolocar a escravidão no contexto da história brasileira, que tem gente muito mais competente para fazer isso, eu estou querendo mostrar o imenso reflexo que a escravidão teve na arte produzida pelos artistas estrangeiros estimulados por temas brasileiros. Mais do que qualquer outra coisa, era o que mais chocava e mais impressionava. Se você ver todas as imagens desses artistas viajantes, a imensa maioria das imagens urbanas tem escravos, tanto do Debret, quanto do Rugendas, porque eles estavam por toda parte. No Rio de Janeiro, eles chegaram a ser metade da população.

Infelizmente, a gente vive um momento em relação aos museus no país que não é lá muito favorável. A gente está pensando aqui, no caso, no museu paulista e em alguns museus no Rio de Janeiro que não tem tido verba para manter algumas exposições. Na sua avaliação como curador, existe algum tipo de ação a ser empreendida para que essas coleções não se percam? E não estou falando de se perder apenas em termos das obras deixarem o museu, serem roubadas ou coisas do tipo. Elas se perderem junto ao grande público que vai deixar de frequentar esses espaços.

 

O museu tem que perder essa reputação de chato. Não é com todo mundo evidentemente, mas para uma parte da população, a coisa do museu é uma coisa que ficou meio congelada, um lugar que ninguém visita, mas que tem que ser preservada. Mas os museus são divertidíssimos. No mundo inteiro, os museus são visitados por multidões. Depende, evidentemente, de o museu tornar a visitação a mais estimulante possível, sobretudo em um momento em que eles têm que disputar a atenção do público com cem números de diversões. O acesso à informação se tornou tão avassaladoramente fácil nos últimos 20 anos com o desenvolvimento da internet e dos vídeo games e da própria televisão e da televisão a cabo e de tudo que você vê hoje em dia, que não precisa nem de televisão a cabo, que você vê praticamente no telefone celular, você tem uma concorrência tão intensa não só com os museus, mas com a leitura tradicional de livros. Para a maneira clássica de você se relacionar com a informação, tudo está mudando com uma velocidade muito grande. Nesse mundo cada vez mais virtual, você ver fisicamente certas coisas faz uma diferença muito grande. Você pode ver toda a arte do mundo, hoje em dia, no seu laptop. As imagens estão todas disponíveis e você vê até com uma certa nitidez, mas nada substitui a experiência de você olhar para o quadro, ver a textura do quadro, ver como a pintura foi aplicada no museu quando você está vendo a original. Talvez chegue o momento em que as três dimensões com um HD alucinante te dê todas as sensações, mas aí ninguém mais vai sair de casa. Sei lá o que vai acontecer. Esse futuro eu não quero imaginar e provavelmente nem vou mais estar aqui. O que eu quero te dizer é que o museu tem o desafio, e com a verba restrita o desafio é ainda mais desafiador... Aqui no Itaú, evidentemente, o Itaú resolveu tomar uma decisão política, diante do reconhecimento da importância dessa coleção, de dedicar dois andares do seu prédio do Itaú Cultural na Av. Paulista, um local privilegiado de São Paulo, para uma exposição permanente de uma coleção que eles consideravam que traria uma contribuição cultural excepcional. Você disse que essas obras são expostas em outros lugares do país. São, mas não com esse recorte, não com essa abordagem. A Pinacoteca de São Paulo tem umas peças bem importantes emboçadas como obras de arte, assim como são aqui. O Museu Paulista, que está fechado, tem um viés completamente histórico. O Museu Nacional de Belas Artes mistura as pinturas brasileiras e estrangeiras, quer dizer que para eles não há essa noção tão clara do relato que a gente faz aqui. É um grande desafio? É. O museu pode ser extraordinariamente interessante ou pode ser, de fato, para as novas gerações, chatérrimo, dependendo da maneira como as coisas forem apresentadas.

Você mencionou agora a respeito da decisão política de dedicar dois andares em um museu localizado na Av. Paulista para essa coleção. A relação do Itaú Cultural com as leis de incentivo para essa exposição especificamente também foi uma decisão política?

As leis de incentivo tiveram zero a ver com essa exposição. O Itaú Cultural lida com imensa verba de Lei Rouanet, porque, evidentemente, a Lei Rouanet do banco vai em grande parte para as atividades do Itaú Cultural, ou do Itaú, digamos. Mas o Itaú Cultural bota uma quantidade imensa de dinheiro próprio. Não houve um pingo de incentivo, nem na formação da coleção nem na publicação do livro, que eu publiquei a primeira edição em 2009 e agora uma segunda com as últimas aquisições chama Brasiliana Itaú, nem na montagem dessa exposição. Quando eu te falei decisão política, qualquer decisão é política, obviamente, mas é uma decisão, a meu ver, em um contexto em que 90% do que é oferecido ao público é arte contemporânea, contra essa corrente, ainda que no fundo exibindo as raízes de muito do que a procura na arte contemporânea hoje é, contra o que muitas de suas fontes principais. Se você ver a arte da Adriana Varejão, de Beatriz Milhazes, de Vik Muniz, eles conhecem profundamente a arte que é mostrada no espaço Olavo Setubal e são profundamente influenciados por ela. E quando não são, os próprios temas da sua arte, como no caso da Adriana em grande parte. Eu acho que é muito significativo, corajoso, forte e assertivo o Itaú Cultural resolver que uma coleção dessa importância merece um espaço permanente de exposição no seu espaço mais nobre, que é o prédio da Paulista. Eu acho uma atitude de grade alcance e significado, sobretudo porque não há lei de incentivo envolvida.

Como curador, qual é a obra que mais enche os seus olhos de orgulho nessa exposição.

É a história do filho favorito... É muito difícil realmente responder sua pergunta. Eu acho que há muitas que me enchem de orgulho como brasileiro. Eu acho que há obras de um mérito artístico excepcional. Enfim, há obras que tiveram uma trajetória até chegar até nós muito curiosa. Eu te diria que como paulista transplantado, digamos assim, nascido carioca, mas que mora em São Paulo há 32 anos, o quadro de São Paulo, do Pallière, Vista Geral de São Paulo, que é o único óleo sobre tela de São Paulo até antes da invenção da fotografia, é uma peça de um significado incalculável. Mostra o delineamento do perfil de São Paulo em 1821. Eu cheguei a escrever um livro há 15 anos sobre todas as imagens de São Paulo que eu fui catar junto aos colecionadores, aos museus e etc., em que eu afirmava que ninguém tinha gasto nem tela nem óleo para pintar São Paulo, porque era uma cidadezinha de 20 mil habitantes e de 50 ruas. Eu mesmo atualizei o meu livro dois ou três anos depois quando, por acaso, descobri esse quadro na casa de uma senhora que tinha me pedido para avaliar uns livros que ela tinha antigos. Eu pedi para minha mulher, que, por acaso, estava comigo, para me beliscar, porque estava lá, há 110 anos na mesma família, nem a família imperial guarda coisas por 110 anos no Brasil, que é um país que tem uma mobilidade, as pessoas se mudam. Não tem castelos como na Europa que guardam nos sótãos 300 anos na mesma família a melhor tralha. Aqui não acontece. Por acaso, esse quadro tinha ficado fora do alcance do público desde o momento em que ele foi leiloado no Leilão do Paço, que vendeu os pertences do Pedro II depois da República. Foi comprado por uma pessoa que guardou 110 anos e a família já não sabia a importância que aquele quadro tinha. Por estar muito envolvido com essa história, por ter desatualizado meu livro... Aliás, fiz uma segunda edição e botei esse quadro na capa. Se esse quadro fosse conhecido na época do quarto centenário em que houve comemorações gigantescas em 1954 no Museu Paulista, no momento de grande orgulho, ele teria sido o ícone máximo das comemorações do quarto centenário, porque ele é um quadro de uma importância absurdamente cavalar. O Dr. Olavo entendeu imediatamente a importância disso e no leilão feito nos Estados Unidos, mas a peça não tinha saído do Brasil, comprou contra alguns concorrentes. O negócio subiu uns 30% em relação a avaliação mínima, mas hoje uma pessoa que participou do leilão me disse que hoje pagavam 10 vezes mais por esse quadro. É um quadro que não tem equivalente. É um verdadeiro milagre ele ter sido reencontrado. A maior cidade da América Latina, o único quadro a óleo que retrata a cidade. Claro que depois da invenção da fotografia houve muitos outros, mas não tem o mesmo charme. D. Pedro I encomendou ao Pallière para ter no Paço, da capital, no Rio de Janeiro, em uma sala do paço tem uma imagem da capital de São Paulo, onde ele tinha proclamado a independência, onde tinha também conhecido a Marquesa de Santos, mas isso era uma coisa mais privada. É tanta história com relação a como esse quadro sobreviveu, mas permaneceu oculto, como ele foi criado, que torna isso fascinante. Aliás, se você vai ver, o público não se dá conta visitando a exposição, mas as vezes quando eu mostro eu destaco esse aspecto, talvez quatro ou cinco das obras primas dessa coleção, o quadro do Debret retratando o casamento do Pedro I, um trompe l`oeil muito interessante que o Debret participa. Obras fundamentais para a iconografia brasileira e para a arte brasileira do período, eram totalmente desconhecidas até 10, 15 anos atrás. Foram redescobertas nesses últimos 10, 15 anos. Uns nos sótãos da Europa. São brasileiras, mas foram levadas para a Europa, como foi caso de duas ou três, ou mesmo no Brasil, onde, por acaso, essa família tinha mantido essa obra durante mais de 100 anos.

 

O cmais+ é o portal de conteúdo da Cultura e reúne os canais TV Cultura, UnivespTV, MultiCultura, TV Rá-Tim-Bum! e as rádios Cultura Brasil e Cultura FM.

Visite o cmais+ e navegue por nossos conteúdos.

Comentários

Compartilhar


relacionadas