Letra Nova

“Gosto daquilo que não se deixa domar”


Luís Antônio Giron, do cmais+ Literatura

21/05/15 18:33 - Atualizado em 21/05/15 18:40

José Rufino (Foto: Adriano Franco)
José Rufino, autor de Afagos (Foto: Adriano Franco)

O artista e autor paraibano José Rufino revela nesta entrevista ao Cmais como consegue conciliar trabalhos tão diferentes como montar instalações e narrar histórias. Ele também comenta suas influências literárias e seu método de escrever, suas origens e projetos. Sobretudo afirma-se como um criador que busca o coração indomável das coisas e dos seres.

Cmais - Por que você escreve? E por que um artista plástico se atreve a escrever?

José Rufino - Resolvi escrever textos autônomos em relação ao meu trabalho artístico pelo prazer do desafio e para cultivar campos até então intangíveis com a linguagem da arte. Esse atrevimento é uma estratégia, um avanço na investigação de outros lóculos da natureza humana. A literatura permite infinitas soluções, combinações, espacialidades e temporalidades, muito além daquilo que sou capaz com traços, cores, texturas, volumes. Permite certos cortes mais fundos e estreitos no tecido humano. No entanto, os textos literários, como os microcontos de Afagos, não chegaram para substituir meus processos de criação em arte. Todos são parceiros. Alguns são emissários que partem das fissuras das obras de arte, carregando parte de seus discursos. Outros são convidados, chamados para ajudar com aquilo que falta nos desenhos, nas instalações.

Cmais - O que criar obras de arte e escrever têm em comum e no quê se distinguem? O que cada uma das atividades trouxe a você em ensinamento e sensibilidade?

José Rufino - A maturação e a exsudação das ideias para a criação de desenhos, esculturas, instalações ou textos passa pelas mesmas etapas de criação. É o mesmo aparato mental, a mesma experiência de vida, a mesma bagagem cultural que entra em jogo. A diferença ocorre na manifestação final, na apresentação daquilo que pululou no cérebro e que precisa passar a existir como linguagem. Nesse sentido, na apresentação, as palavras podem ter mais vantagens, podem carregar potências mais eficientes do que aquelas que emanam de pigmentos, madeiras, ferragens, móveis velhos. As metáforas, as simbologias, as analogias funcionam de forma diferente. Escrevendo, eu posso dizer: mascava ferro como se fosse nervo de carne. Isso está no meu espectro de interesse como artista e escritor, mas se você me entregasse uma barra de ferro e um pedaço de carne talvez eu não encontrasse um sentido metafórico, um mote conceitual para o desenvolvimento de uma obra no campo da arte.

Cmais - É possível comparar seus microcontos e suas instalações? O deslocamento funcional de suas obras não parece ter muito a ver com o lirismo de sua prosa poética...

José Rufino - Não vejo diferenças no repertório de interesses e intenções entre os microcontos e as instalações. O sentido conotativo está nas duas linguagens. Uma delas, Lexicon silentii, por exemplo, age como uma prosopopeia composta por pedras arrumadas no chão, pedras que “soltam” suas vozes, que “falam” dos conflitos da Ligas Camponesas da Paraíba, de onde foram exumadas. Instalações, no entanto, são obras compostas por vários elementos, pela espacialidade, pela relação entre os elementos arquitetônicos e museológicos, como piso, teto, luzes esquadrias e os elementos produzidos ou modificados por mim, como móveis, barcos, pedras, gravuras, cordas e carimbos. Também vejo lirismo em coisas enormes, pesadas, graves. Porém, a vibração lírica dos microcontos talvez encontre sintonia mais óbvia nos meus pequenos desenhos, especialmente da série Cartas de Areia (1988-2015), produzida sobre envelopes e cartas de família. Esses desenhos são carregados de personagens e histórias borradas, transfiguradas.

Cmais - Você começou na poesia para depois se dedicar às artes plásticas. Como foi esse processo? Houve um momento em que você desanimou da poesia?

José Rufino - Fui me sentindo incapaz de escrever poesia na medida em que fui lendo mais poesia. Com Ezra Pound, Baudelaire, Augusto dos Anjos, Yates, D. H. Lawrence, Mallarmé, Keats e Bandeira eu já tinha isso como praticamente certo. Por fim afundei lendo “O cão sem plumas” e quase não conseguia mais nem ler poesia, mesmo de João Cabral. O alívio veio com a palavra menos enlameada dos concretistas e aí tive uma temporada, ainda nos anos 80, de Haroldo e Augusto de Campos e Pignatari, como também e. e.cummings, John Cage e os artistas experimentais pernambucanos Montez Magno, Paulo Bruscky e Daniel Santiago. Migrei para a poesia visual e dela para a arte postal e abandonei aquilo que poderia ter se transformado em literatura, avançando cada vez mais nas artes visuais, mesmo sem deixar o texto, o suporte-texto, o texto-conceito, o texto-mote, e inclusive, o texto como parte formal dos desenhos, das pinturas.

Cmais - Em Afagos, há a seguinte afirmação: “Nos contos que pensa em escrever, gostaria de falar sobre corvos, mas lhe cabem sabiás”. E assim por diante. Isso soa como uma vontade frustrada e os sabiás, uma espécie de resignação. É isso? Por que não escrever sobre corvos? Por que não fazer algo sobre o que não se tem experiência?

José Rufino - Esse conto abre a seção como uma anunciação de um tom dicotômico presente em muitos deles, mas não resisto em lhe revelar, como tempero para esse conto-epígrafe, que a propriedade onde está meu ateliê se chama Sítio Sabiá. No entanto, minha similaridade com o personagem do Córrego da Invasão acaba aí, pois corvos, Bósforo e melancolia já tenho na experiência pessoal ou puxo dos já alardeados mistérios da literatura de ficção.

Cmais - Quem são seus mestres literários?

José Rufino - Depois que percebi que iria responder a esse tipo de pergunta, me dei conta que sou um péssimo leitor, no sentido do “respeito” às obras lidas. E como mau leitor, tenho fraca memória para discorrer sobre detalhes de obras, sobre textos que ficaram nos planos referenciais. Mesmo para aquelas obras que me foram arrebatadoras, como o Cão sem plumas, Um copo de cólera, Cem anos de solidão, o que eu guardo é uma sensação, uma espécie de febre. Geralmente esqueço-me dos nomes e características dos personagens, dos topônimos e das amarrações da narrativa. Fico com uma pasta misturada, com uma cacofonia ressonando e se misturando com outras. Nesse sentido, sou muito mais chegado aos textos que carregam experiências de linguagem, ritmos frenéticos, construções sufocantes, fluxos torrenciais ou lodaçais de palavras. Ainda preciso de tempo para dizer exatamente como eu leio e consequentemente como crio, mas sempre leio criando desvios e escrevo nutrindo as palavras como se fossem seres autônomos. Nesse sentido, prosas mais poéticas me pegam mais e aquelas que já se apresentam como seres vivos em estado de agonia, me servem mais ainda. O monumental O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, é exatamente esse tipo de prosa, onde cada palavra é uma célula inoculada de loucura, capaz de gerar tumores descontrolados dentro do romance. Pynchon me permite criar romances dentro de seus romances, como doenças passageiras.

Cmais - Você parece gostar de filmes difíceis e de citações difusas. Por quê?

José Rufino - Gosto daquilo que se apresenta em forma de mistério, que não se entrega, que não se deixa domar. Gosto de taxonomias, mas persigo aquilo que não se pode classificar. Gosto de lexicografia, de termos obsoletos, mas procuro a palavra que não existe, nem no ”Léxico das lacunas” de Tanay. O meu filtro ora é difuso, ora está bem focado num canto diminuto. Presto atenção a detalhes, a movimentos sutis, a sombras, restos e sobras periféricas das conversas alheias.

Cmais - Você tem um método de trabalho ao escrever ou apenas ao realizar suas obras? Você poderia descrever os dois métodos? Você é metódico ou intuitivo?

José Rufino - Não sou metódico no sentido de planejar as obras com esboços muito detalhados, de manter diários de processos, cadernos repletos de anotações. Anoto ideias, faço listas, rabisco projetos e algumas maquetes, mas geralmente detalho somente para a construção. No entanto, o trabalho tem uma rotina, um sentido de continuação, de comprometimento e mergulho que se adensa e se torna mais complexo desde seu princípio nos anos oitenta. Muitas frentes de trabalho são desencadeadas simultaneamente e cada obra pede um tempo distinto, uma energia específica. Algumas obras se arrastam por anos, pedem para morrer ou para reviver no corpo de outras. Algumas são quase instantâneas, pelo menos na etapa da manifestação física. Umas pedem silêncio, escavação íntima, outras surgem quando revolvo terras alheias. A mesma dinâmica ocorre com os textos presentes nas obras de arte e também naqueles que tomam autonomia como literatura. Como essa torneira literária foi aberta tardiamente o que me dá realmente trabalho é conter a enorme vazão.

Cmais - Explique, por favor, o epitáfio que você parece ter criado para si próprio: “José, o que morreu sem a velhice”. 

José Rufino - Espero que esse não seja realmente meu epitáfio. Para mim, esse conto emenda o conjunto de Afagos com o romance Desviver. É o José personagem que se recolhe “das carnes ralas até os ossos fracos” e com ele se recolhe um fechamento enigmático, como um colofão transfigurado.

Cmais - Como você decidiu publicar seus contos, ou microcontos?

José Rufino - Meu contato inicial com a CosacNaify aconteceu quando fui contemplado com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária, em 2009, e comecei o processo de pesquisa e desenvolvimento do romance Desviver, ainda inédito. Apesar de ter enviado uma versão terminada para a FUNARTE em 2010, dei continuidade ao projeto e ainda trabalho nele e assim a Cosac ainda não recebeu o texto final. É um texto complexo e que exige muito de mim, pois se trata de uma prosa que vagueia no tempo e recupera a literatura do ciclo canavieiro, na voz de um personagem-narrador que é meu avô paterno. Foi por causa desse projeto que comecei a escrever, ainda em 2009, contos, como coisas que escapavam do curso de Desviver para me dar alívio, para me possibilitar outra experiência formal. Logo senti a necessidade de contrair os contos e cheguei nesse formato de micronarrativas. Em 2012 já andava com um conjunto de mais de uma centena e mostrava aos amigos, que me incentivaram a apresentar à Cosac. A decisão da editora de publicar foi bem rápida, seguida da assinatura de um contrato como autor de ficção.

Cmais - Que sentimento você tem ao publicar um livro, e que repercussão ele teve?

José Rufino - Para quem sempre foi apaixonado por livros é uma sensação incrível, acompanhada por um sentido de responsabilidade. A repercussão tem sido muito acima das minhas expectativas e Afagos tem servido para abrir caminho para outros projetos, outros livros de microcontos, de contos e, claro, para o romance Desviver.

Cmais - Em um dos contos, você menciona a tecnologia – o Google, por exemplo – como um convite à solidão, mas também à aventura de conhecer um lugar impensável. Que papel tem a tecnologia – especialmente a internet – em nossas vidas? E na vida de um artista?

José Rufino - A internet tem um papel importante para mim, tendo em vista que vivo longe dos grandes centros produtores de cultura. Funciona como essa ferramenta dicotômica, de isolamento e de difusão do meu trabalho, de escape e de inserção.

Cmais - Você visita museus virtuais?

José Rufino - Quando preciso deles, assim como as revistas eletrônicas. Tento me manter atualizado, entender as principais tendências do mundo da arte e da literatura, as principais discussões, inquietações.

Cmais - Tecnologia e obras de arte podem interagir? Em que medida?

José Rufino - Podem e devem. Os artistas têm buscado, especialmente a partir do início do século XX, a conquista de uma gama mais ampliada, mais complexa, dos aparatos sensoriais na experiência da arte, tanto na criação quanto nos fenômenos de interação com o público. Já não falamos mais de arte para os olhos e sim de Arte, e basta esse termo para entendermos que estamos falando de algo para todos os sentidos, como o tato, o olfato, a audição e, porque não, para a sinestesia. E se os artistas querem sinestesia, a literatura parece caber perfeitamente dentro de suas estratégias.

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