Letra Nova

As cenas finais de Getúlio Vargas

Lira Neto conclui sua trilogia sobre o presidente com passagens trágicas e desconhecidas


Luís Antônio Giron, para o cmais+ Arte & Cultura

14/08/14 17:41 - Atualizado em 14/08/14 18:26

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Às 8h35 da manhã do dia 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete do Rio de Janeiro, o presidente da República Getúlio Vargas se suicidou com um tiro no coração, em sua cama. Na  Carta-Testamento, denunciou que era vítima de uma conspiração internacional com aliados locais. O trauma que resultou do episódio é lembrado agora, nos 60 anos da morte de Getúlio. O produto mais notável da efeméride é o lançamento do último volume da trilogia sobre o político gaúcho, escrita pelo jornalista e historiador cearense Lira Neto, Getúlio (1945-1954) - da volta pela consagração popular ao suicídio (Companhia das Letras, 429 páginas, R$ 49,50). O livro encerra a biografia de Getúlio, iniciada com  Getúlio (1882-1930) - dos anos de formação à conquista do poder e Getulio (1930-45) - do Governo provisório ao Estado Novo.

Ao contrário das obras anteriores, repletas de detalhes pessoais saborosos, o terceiro volume revela uma vida solitária e triste, que lembra a novela Ninguém escreve ao coronel do colombiano Gabriel García Márquez, o retrato do caudilho no isolamento total. Na última fase da vida de Getúlio, não há amores nem escapadas românticas. Lira Neto detalha a enfadonha e maquiavélica correspondência entre Alzira, a filha amada e sempre presente, e o velho ditador isolado no sítio Itu, em São Borja (RS). Entre 1945 e 1950, ele ficou totalmente sozinho (sua mulher, Darcy, morava em um apartamento no Rio de Janeiro). Seu cotidiano era monótono. Fazia longos passeios a cavalo e tomava conta dos serviços do sítio.

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Mesmo querendo sossego, Getúlio voltou à política foi reeleito e, em 1951, assumiu o seu segundo mandato, desta vez chancelado pelo voto popular. No período, foram dois os fatos significativos: a oposição do exército a seu governo e a campanha contra e a favor pelos jornais. Esses acontecimentos dão ao livro um ar mais lúgubre que os anteriores. Os militares de alto escalão alinhados com os Estados Unidos movimentaram-se de forma permanente contra o nacionalismo reformado de Getúlio. A conspiração militar se evidenciou tanto pela recusa dos escalões superiores das forças armadas de assumir cargos no governo como na sua defesa da política americana. Era como se o golpe de 1964 estivesse sendo armado desde então. Vargas se recusou a fazer viagens e acordos militares com os Estados Unidos, que exigiam seu alinhamento e envio de tropas na Guerra da Coreia e a aliança com o presidente argentina Juan Domingos Perón. A situação difícil do governo se completou com a campanha do exército e da UDN (União Democrática Nacional) contra a criação da Petrobrás e o monopólio estatal do petróleo.

Assim, o governo Vargas não conseguiu implementar reformas junto ao Congresso Nacional, onde seu partido, o PTB, tinha minoria. Muito de seus projetos não foram nem sequer discutidos. Foram os casos do projeto de extensão dos direitos sociais aos trabalhadores do campo -  do qual, segundo Lira Neto, a imprensa nunca tratou - e o da criação da Eletrobrás. O confronto entre Executivo e Legistlativo chegou a tal ponto que chegou a ser votado um impeachement contra Getúlio em 16 de junho da 1953.  Recebeu apenas 35 votos favoráveis, todos da UDN.

O clima ficava mais tenso com os ataques do jornalista e udenista Carlos Lacerda contra qualquer ação governamental. Getúlio então incentivou o rival de Lacerda, o jornalista Samuel Wainer, a fundar o jornal Última Hora. Sem ser um órgão governamental, o jornal de Wainer passou a defender Vargas. Ao mesmo tempo, ainda que com a cobertura política nada isenta, Última Hora inovou ao introduzir assuntos como atenção como o futebol e  o cotidiano. No entanto, Lacerda ganhou terreno com o atentado da rua Tonelero, em 5 de agosto de 1954, que resultou na morte do  major Vaz, acompanhante de Lacerda. Lacerda mostrou um ferimento no pé e iniciou uma campanha definitiva de derrubada de Getúlio. As dúvidas sobre o atentado permanecem.

Carlos Lacerda ferido

 

De acordo com Lira Neto, a arma de Lacerda nunca foi periciada e o prontuário sumiu do hospital. Assim, não se sabe se atirou mesmo no pé ou o tiro partiu de outra pessoa. O mandante teria sido o capataz de Getúlio, Gregório Fortunato. Ele havia dado 35 mil cruzeiros para seu assistente João Valente de Souza pagar a Climério Euribes e Alcino do Nascimento para realizar o atentado contra Lacerda. Os dois fugiram. O último golpe em Getúlio foi a divulgação de um recibo de 1,6, milhão de cruzeiros  pela venda da Fazenda São Manuel em São Borja a Gregório Fortunato  dado por Maneco Vargas, filho de Getulio. Seria uma transação incompatível com os ganhos modestos de Fortunato. O caso levou Getúlio ao suicídio.

Lira Neto levanta alguns dados inéditos. Observa que Getúlio aludiu várias vezes à possibilidade de se suicidar. Afirmava que era melhor morrer do que perder a honra. Disse isso em 1930 e em 1932. Mas isso talvez fosse uma forma bem gaúcha de se vangloriar, não uma afirmação séria. O fato é que as afirmações antecedentes ganharam em drama quando ele se suicidou.

Outra novidade do livro é a narrativa minuciosa da reunião extraordinária, convocada por Getúlio no Catete na madrugada de 24 de agosto, com seu ministério. A pauta era definir as medidas a serem tomadas pelo presidente. As soluções propostas para a crise foram a licença ou a renúncia do presidente. O encontro foi interrompido às 4 horas da manhã pela família de Getúlio, preocupada com o desfecho trágico já sugerido por ele. Os ministros discutiam sobre a situação quando a primeira-dama Darcy Vargas e os filhos Alzira, Lutero e Maneco e outras pessoas entraram subitamente no salão de despachos do palácio, para ouvir a discussão. Alzira bateu na mesa e tomou a palavra: “Não é só a vida da República e a vida do meu pai que estão jogo. A minha também está. E eu me julgo com o direito de informar aos senhores, se é que não sabem, que nós temos capacidade de resistir.” Às 4h20, quando os ministros redigiam uma nota, na qual informavam a licença, Getúlio foi embora sem dizer nada. Às 5h30, Alzira foi até o quarto do pai para lhe mostrar a nota pronta, mas ele a mandou embora. “Vivo não me entrego”, disse Getúlio a Lutero, que estava no sofá ao lado do quarto. “Nenhum sangue será derramado. Se algum sangue for derramado, será de um homem cansado e enojado de tudo isso.” A família correu ao ouvir o tiro. Alzira correu para abraçar o pai, que parecia reconhecê-la ao dar o último suspiro.

Para narrar os instantes finais de seu personagem em plena situação de tragédia, Lira Neto recorreu a vários depoimentos históricos e às memórias inéditas de Alzira Vargas. O material faz dele um biógrafo incansável na busca das fontes e exemplar em não tomar partido.

GETÚLIO - Da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954) (Ed. Companhia das Letras | Foto: Divulgação)

 

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